segunda-feira, 23 de novembro de 2009

em primeira mao: artigo no prelo de um livro da UFSCAR

APOCALIPSE: DEUS QUE DÁ ESPERANÇA NA CRISE

Dr. Paulo Fernando Dalla-Déa
Ms. Nanci Moreira Branco


A literatura apocalíptica tem direito de cidadania na Bíblia desde a época do profeta Daniel, aproximadamente 200 a.C. Uma literatura que não é nova, mas é quase que desconhecida. Neste artigo, tentaremos dar algumas luzes sobre este texto bíblico partindo da Bíblia como texto e não de uma perspectiva de fé. Muitos são os cristãos que abordam o Apocalipse como possibilidade de amedrontamento, coisa para a qual ele não deveria se prestar. A sua finalidade é bem outra.
Todo texto traz em si o contexto em que foi escrito e deve ser entendido a partir da ótica de quem o lê. O diálogo que existe entre o autor e seu texto e este e o seu leitor é sempre fonte de novas descobertas e tem sempre novo sabor, pois o texto é lido a partir do contexto do leitor, que é mutável porque vivemos em um tempo e em meio a acontecimentos que não param e que modificam nosso ponto de vista interpretativo .
Contexto político e histórico da crise
A ambientação da escrita do livro do Apocalipse (= do grego: revelação) se dá durante a dominação da PAX ROMANA. O local, segundo Ap 1,9, é a ilha de Patmos, no Mar Egeu, próximo a Éfeso, na Grécia. Não estamos mais em ambiente judaico puro, mas no do judaísmo helenista . Foi neste contexto que fermentaram as comunidades judaico-cristãs primitivas. Pelo testemunho do próprio texto, o autor parece conhecer as comunidades da sua região . Estas comunidades passavam por uma crise dupla, que vamos ver a seguir.
CRISE EXTERNA. Dos anos de 90 até 135 d. C, temos o desencadeamento da perseguição do Império Romano, que estava em crise e tinha adotado como possível solução a exacerbação do panteísmo. O Império Romano nunca foi ateu, mas politeísta. Nesta época, Domiciano se proclama deus e se faz adorar por todos os povos dominados pelo jugo da PAX romana. Para manter a paz, retém os bens, através dos impostos; a liberdade de pensamento e culto religioso, através do culto forçado. E os judeus, recusando-se a isso, são chamados de ateus. Entre eles estão os cristãos, acusados e usados de bode expiatório pelo Império.
A experiência de impotência de muitos cristãos colocava em cheque o título de Kyrios (Senhor) dado a Jesus e agora reivindicado pelo Imperador romano. Muitos cristãos estavam com a sua fé abalada e duvidavam se Jesus Cristo era mesmo senhor do mundo diante do poderio dominador dos romanos. Os romanos já tinham demonstrado sua superioridade militar e política quando em 70 d.C. arrasaram a revolta judaica em Jerusalém e arredores. .
CRISE INTERNA. No final do século 1 e início do século 2 estamos na segunda geração de cristãos. Esta geração começa a dar sinais de falta de entusiasmo, já que a primeira acreditava que Jesus voltaria logo para julgar vivos e mortos e colocar o seu reinado poderoso numa nova ordem das coisas, da política e das pessoas. Paulo já enfrenta esse problema na comunidade de Tessalônica, quando argumenta que “quando estávamos entre vós, demos esta regra: ‘quem não quer trabalhar também não coma’. Ora, temos ouvido falar que, entre vós, há alguns vivendo desordenadamente, sem fazer nada, mas intrometendo-se em tudo.” (2 Ts 3,10) Muitos não queriam nem trabalhar, já que o Cristo viria logo . A segunda geração está em crise de fé: se o Cristo tarda a chegar, será que ele virá mesmo? Há ainda muitas divisões feitas por grupos e movimentos fanáticos nas comunidades. A primavera religiosa dos primeiros anos estava congelando.
Diante da dominação romana e das dúvidas internas, a crise se agrava e o ambiente de desesperança é o cotidiano de muitos cristãos. A crise está instalada a partir de dentro e a partir de fora. Qual a solução? Muitos cristãos não sabiam o que fazer. Outros se entregaram e se renderam à idolatria romana, ao poder absoluto. Renderam-se ao Império que se declarava o Kyrios do mundo.

O texto
Embora atribuído a João apóstolo, autor do Evangelho e das 3 cartas do Novo Testamento, o critério interno de estilo e de vocabulário comparado entre o grego do Evangelho e do Apocalipse leva a desconfiar de que este João seja o Apostolo João do Evangelho. Ademais, Dionísio, bispo de Alexandria que morreu em 264 d.C., desconfiava desta autoria; assim como o historiador Eusébio de Cesaréia (265- 339 d.C.). Contudo, a partir de 367 d.C., temos o livro do Apocalipse na lista oficial (cânon) da Bíblia. E cabe dizer que os cristãos sempre leram este texto como sendo de inspiração divina ,o que dá a ele uma respeitabilidade muito grande tanto hoje como na época em que foi escrito, corrigido e distribuído.
Colocamos aqui outro problema. O texto é visto com desconfiança e medo hoje porque ele tem uma linguagem totalmente visual e cifrada. Por que isso? Num tempo de perseguição, em qualquer lugar, os perseguidos usam linguagem de código para se comunicar. É recurso de sobrevivência para quem é visto pelo sistema como subversivo ou perigoso. Assim, a linguagem cifrada e imagética do texto era facilmente decifrada pelos cristãos de sua época e lugar, sendo por nós incompreensível porque estamos em contexto e lugar totalmente diverso. Agora, muitos tendem a pensar neste texto como sendo um livro de horrores e de previsões catastróficas sobre o fim do mundo, o fim dos tempos. É assim lido por muitos pregadores e usado para pôr medo nas pessoas a fim de que mudem de vida. Mas – sem dúvida – este não é seu contexto inicial e nem o seu contexto de recepção pelos primeiros cristãos.

A recepção do texto no seu contexto
Ao colocarmos o texto num contexto de perseguição, precisamos inverter o esquema de leitura. Se analisarmos o texto, notaremos que as pessoas que liam tinham uma esperança suscitada em suas vidas. Os acontecimentos descritos como visão não estavam para acontecer, mas muitos estavam acontecendo. A visão do autor do Apocalipse vai mostrando que o Cordeiro sairá vencedor no fim, mesmo que no meio do caminho a Besta tente ser a perfeição do seu reinado . Quem lê numa perseguição não tem tempo de ficar pensando cada detalhe, que pode ser incongruente. Quem lê um texto assim, o faz de forma rápida, ficando com a impressão geral. E a impressão geral quando lemos é que, apesar de tudo, a virada do Cristo como cordeiro vai chegar, mesmo que demore. A saída então é permanecer fiel, pois Cristo assumiu de novo a sua realeza.

E o sétimo Anjo tocou... Houve então fortes vozes no céu, clamando: A realeza do mundo passou agora para nosso Senhor e seu Cristo e ele reinará pelos séculos dos séculos. Os vinte e quatro anciãos que estão agora em seus tronos diante de Deus prostraram-se e adoravam a Deus dizendo: Nós te damos graças, Senhor, Deus todo-poderoso (...) porque assumistes teu grande poder e passaste a reinar. As nações tinham se enfurecido, mas a tua ira chegou, como também o tempo... de exterminar os que exterminam a terra (Ap 11,14)

A partir deste capítulo 11, temos um ponto de virada. Se até aqui o texto descrevia os males que estavam “por vir” e “desgraças iminentes”, a partir de então, marca uma virada radical. Mesmo que as forças do mal estejam ainda tentando reunir as últimas forças para combater, depois do toque da sétima trombeta, o mal já foi vencido. No capitulo 14, outro anjo sentencia: “Caiu, caiu Babilônia, a Grande , a que embebedou todas as nações com o vinho do furor de sua prostituição.”
Como uma pessoa que está sendo perseguida pode receber um anúncio deste? Sem dúvida, com esperança e alegria, mesmo que a perseguição ainda não tenha acabado. Vendo o final do filme em que se é parte integrante, mesmo o personagem mais sofredor se alegra com a possibilidade de seu resgate iminente. Este é o contexto original da recepção que as comunidades perseguidas e achacadas faziam de um texto assim. Em tempos de sofrimento persecutório, de desesperança e de quase exaustão de forças, perceber que o sofrimento terá um final a favor dos que agora são perseguidos apenas insufla de ânimo e coragem, plenifica de esperança.
Assim, mesmo tendo a dificuldade inicial da autoria contestada, o livro do Apocalipse foi bem recebido pelas comunidades cristãs porque possibilitou a sua sobrevivência. A mensagem de um autor desconhecido ou apenas conhecido como João (o que possibilitou certa confusão e apreensão no início) só permaneceu porque fez uma leitura esperançosa e verdadeira dos acontecimentos. A sua visão da história pela ótica de Deus se mostrou essencial para a sobrevivência e manutenção da fé cristã.
Aqueles que confiaram na realeza da Besta, do Dragão e foram os discípulos da grande Babilônia (Roma e seu Império) sucumbiram ao julgamento da história. O Império Romano caiu como todos os impérios humanos, por mais forte que tenha sido. E por mais discípulos que tenha feito.
O fato de ter a sua autoria colocada em dúvida pelos seus contemporâneos é fonte de qualidade do texto para nós. Não podemos localizar um autor preciso, o que nos remete a afirmar que este texto é fruto coletivo, seja na confecção, na revisão, na distribuição e na aceitação das comunidades eclesiais de seu tempo.

Outros contextos de perseguição
Para quem possa achar que estamos forçando uma linha de interpretação do texto, gostaríamos de comparar com outro texto de um autor perseguido durante a segunda Guerra Mundial.
Dietrich Bonhoeffer, pastor luterano e doutor em Teologia, foi preso por Hitler acusado de uma conspiração que tentou matar o supremo comandante do Estado Alemão. Homem de fé e extremamente inteligente, passa os dias na prisão lendo e estudando enquanto espera a sua libertação. Ela afinal não aconteceu e ele foi morto antes da vitória dos aliados, em 9 de abril de 1945. Gostaríamos de reproduzir um trecho de uma carta dele à família, esperando o dia da sua libertação:

Parece que agora no meu caso as coisas começaram a andar, e estou muito contente com isto. Tanto mais estranho é não poder conversar com vocês sobre o que está mexendo comigo, (...). Mas penso que agora não vai demorar muito. (...) Mas agora já estou antecipando a imensa alegria pelo dia em que não estarei mais lidando com pensamentos e figuras imaginárias, mas com pessoas reais com todas as diferentes tarefas cotidianas. Será uma grande readaptação.” (BONHOEFFER, p. 164)

Num contexto de crise, como foi a Segunda Guerra Mundial, durante o seu encarceramento, Bonhoeffer escreve estas palavras em 22 de outubro de 1943 porque tem esperança do fim do seu cativeiro. No caso de Bonhoeffer, a sua esperança não se concretizou: ele morreu pouco mais de um ano depois. Mas sem dúvida, a sua esperança o manteve firme e vivo, estudando e produzindo durante o período de prisão. É isso que a esperança faz: mantém o ânimo e dá força para continuar a resistência.
Esse efeito fortalecedor e animador da esperança também foi o que sentiram os cristãos que acreditaram no livro da revelação (Apocalipse). Para quem acreditou nas suas palavras e visões, a realidade ficou menos dura e menos desesperadora. Num contexto de perseguição, como foi a do Império Romano, Estado Totalitário e com pretensões divinas, saber que Deus está dizendo a sua Palavra para aquele povo, dando sua luz e mostrando o caminho do Cristo ressuscitado e vencedor, acende uma fagulha de fé e de vivacidade que faz a diferença. Mesmo que a perseguição seja forte e grande e que as cartas do jogo sejam marcadas, saber que há uma palavra (e Palavra de Deus) que diz o oposto induz a pessoa a lutar e a resistir.
Por isso, temos tantas dificuldades de entender o contexto de esperança e ânimo renovado que os perseguidos sentem ao ler a linguagem cifrada e as visões do livro do Apocalipse. Um pouco como M. BAKHTIN critica estudiosos de Rabelais: não entenderam o essencial porque não entenderam o contexto em que a obra foi produzida.

Os especialistas têm o hábito de compreender e julgar o vocabulário da praça pública em Rabelais em função do sentido que ele adquiriu na época moderna, isoladamente dos atos carnavalescos e da praça popular que constituem seu veículo. Por isto, não podem captar esta profunda ambivalência. (BAKHTIN, p. 129)

Para compreender o sentido e a inovação de Rabelais, Bakhtin estudou o contexto da praça pública e o do riso da Idade Média a fim de perceber o significado da obra rabelaisiana a partir de sua época. Ao fazer um anacronismo no estudo, vendo o texto antigo pela realidade moderna, os estudiosos e comentadores vêem o texto invertido e sem sentido. Diante do contexto medieval, consegue perceber a genialidade dos textos rabelaisianos: trazer o riso e os gêneros do discurso da praça e do povo mais simples. Coisa que pouca gente se aventurou a fazer, por falta de vivência ou por não dar a devida importância para esta cultura popular, tão colorida e rica. Só o gênio de Rabelais conseguiu captar, perceber e registrar esta vida e esta cultura. Foi sua contribuição específica para a literatura universal. O que passou despercebido aos outros se tornou o gênio de Rabelais.
Estamos numa questão semelhante ao ler o Apocalipse: se não percebermos o contexto de perseguição e dificuldade dos cristãos da época, nunca poderemos captar a esperança renovada e o fluxo de sangue novo para quem está sendo perseguido e lê este livro. Quem vê medo, trevas e se sente inseguro com o livro do Apocalipse é porque está confortável em sua posição de vida. Mas quem se sente perseguido e desanimado, por estar com a sua vida em sintonia com o contexto de perseguição e morte, ao fazer a leitura do Apocalipse, sente-se renovado e amparado por um Deus que morreu na Cruz, mas que continua sendo o Kyrios de todo o universo.

Os impérios de ontem e de hoje
Mesmo a leitura mais fundamentalista do Apocalipse não é ingênua. O discurso escatológico de muitas correntes fundamentalistas se funda num contexto de “perseguição” ou mesmo de resistência ao modelo de mundo totalitário do atual Império Capitalista Hipermoderno. O capitalismo, para muitos, é uma instituição tão ou mais totalitária do que o foi o Império Romano.

O turbilhão da globalização está motivando reações defensivas em todo o mundo, (...). (...) A associação no inconsciente coletivo entre crime, violência, terrorismo e minorias étnicas/estrangeiros/o próximo leva a um impressionante aumento da xenofobia européia, bem no auge do universalismo europeu. Há sem dúvida uma continuidade histórica à unificação anterior da Europa medieval em torno do Cristianismo – ou seja, uma fronteira religiosa intolerante, exclusiva de infiéis, pagãos e hereges. (CASTELLS, p. 401-402)

Num contexto assim, a perseguição pode existir, mesmo que seja difusa. A linguagem apocalíptica é muito usada pelos grupos fundamentalistas cristãos, que se sentem perseguidos pela besta capitalista.
Interessante também lembrar que a linguagem do gênero musical rock, especialmente as tendências mais “underground, tende a ter uma linguagem mais próxima da apocalíptica cristã, visto que contesta o status quo. As imagens do rock com relação ao apocalipse e a sua profusão de letras usam o tema do fim do mundo, da morte e dos cavaleiros do Apocalipse: guerra, fome, doenças e morte. Só poderemos entender a fascinação dessa imagética ao perceber o contexto de perseguição da sociedade ao rock contestador e subversivo. Ao serem integradas à sociedade, essas imagens tendem a ser percebidas apenas como simpatia à morte e ao demônio, o que antes tinha significado preciso de contestação “underground” do cristianismo e da sociedade capitalista que ele obliquamente gerou.
Cremos que essas reflexões a respeito do livro do Apocalipse podem nos dar a perceber o ambiente em que ele foi gerado, qual a sua força a partir de um contexto de perseguição para um grupo/pessoa que o leia. E esperamos que este artigo seja gerador de uma leitura menos invertida e mais realista do Apocalipse. Se este artigo servir de start para leituras mais aprofundadas, poderemos dizer que ele cumpriu seu papel.

BIBLIOGRAFIA

BONHOEFFER, Dietrich - Resistência e submissão: cartas e anotações escritas da prisão – trad. Nélio Schneider. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2003.
BAKHTIN, M. – Cultura popular na idade média e renascimento – trad. Yara F. Vieira. São Paulo: HUCITEC/UNIVERSIDADE DE BRASILIA, 1987.
CASTELLS, M. – Fim de milênio - trad. Klaus B. Gerhardt e Roneide V. Majer, 2ª. ed. SP: Paz e Terra, 2000. (A era da informação: economia, sociedade e cultura, vol. 3)

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