ENSAIO SOBRE A LINGUAGEM RELIGIOSA DA TATUAGEM
1.
TATUAGEM: DO TABU À EXPRESSÃO DE SI
Vista como marcação de uma pessoa como fora-da-lei, no
início do século XX, a tatuagem evoluiu para a sua introdução na cultura pop do
final do século XX. Essa passagem, de cultura
underground para a sua valorização
cult foi um grande passo. Vista como forma demoníaca de marcar o
corpo pelos religiosos mais fundamentalistas e por muitos pentecostais (Cf.
Lev. 19,28), foi se resinificando à medida que a sociedade não precisa mais de
uma tutela religiosa para dizer o que se pode ou não fazer
. Por
fim, no final do século XX e início do século XXI, acabou caindo no gosto
popular dos jovens numa cultura icônica que usa mais as imagens do que as
palavras para comunicar. O que começou como inspiração religiosa e ritual de
inúmeros povos da humanidade nos mais diversos tempos, passando a ser considerada
demoníaca pela cultura cristã e
underground
no mundo das prisões. Atualmente, expressa-se como forma religiosa não
institucionalizada e permitida por uma sociedade que se percebe secular. Um salto
desse só poderia existir no interior de uma cultura que valoriza a identidade
pessoal do grupo ou tribo com uma cultura icônica surgida a partir da
comunicação informacional em rede. Identidade pessoal e imagem não se
contradizem, mas se somam e se reforçam. Na atual sociedade do espetáculo de G.
DEBORD, a imagem vale mais do que a sua fonte, a cópia mais do que o original,
porque pode ser reproduzida à exaustão, num espetáculo.
Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de
produção se anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era
diretamente vivido se esvai na fumaça da representação. (2003, p. 8)
A cultura informacional atual cultua a imagem como dado,
como informação e como espetáculo de si mesma. O corpo, introduzido nessa
lógica de produção e reprodução espetacular passa a ser valorizado pelo que
expressa e representa, pela silhueta que mostra e pelo simbólico que traz à
tona. A imagem inscrita sob a pele se torna uma epifania do que se quer
mostrar: uma máscara do desejo de representação que se quer imprimir na mente
de quem vê: é um fetiche de si mesmo.
Uma epifania do self, uma forma de se
realizar o desejo na imagem que se projeta sobre a visão e a mente do outro. A
tatuagem é um signo, um sinal que se
quer expressar o próprio ser ou uma mensagem ao outro. Como tal pode ser
decodificada de muitas formas, como nos ensina BAKHTIN (2006, p. 29)
Os signos também são objetos naturais, específicos, e, como vimos: todo
produto natural, tecnológico ou de consumo pode tornar-se signo e adquirir,
assim, um sentido que ultrapasse suas próprias particularidades. Um signo não
existe apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e refrata uma
outra. Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel, ou apreendê-la de um
ponto de vista específico, etc. Todo signo está sujeito aos critérios de
avaliação ideológica (isto é: se é verdadeiro, falso, correto, justificado,
bom, etc.). O domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos: são
mutuamente correspondentes. Ali onde o signo se encontra, encontra-se também o
ideológico. Tudo que é ideológico possui um valor semiótico.
A pele inscrita se insere na categoria não mais da biologia,
porque cumpre uma função de tela de projeção do interior ao exterior, podendo
ser ideologizada ou não, estando sujeita às regras semióticas e às suas
interpretações. Segundo COSTA (2011, p. 3):
Além do significado para si mesmo, a pessoa deve ter
consciência de que a tatuagem fará parte de seu corpo para sempre e tem pelo
menos três significados: o “normal”, o “de cadeia” e o que significa para
psicólogos das empresas aquele desenho no corpo do interessado em ser contratado.
Assim, todo o cuidado é pouco.
A pele não é mais apenas a pele do corpo, mas passa a
inserir uma mensagem a ser interpretada por quem vê. Expressão de dor, de
alegria, de frustração, de sensualidade, de alegria, de bons momentos ou de
amor, ela também expressa o sentimento religioso. E uma vez feita um desenho na
pele, as interpretações que toma são independentes do significado que quem fez.
Como toda interpretação semiótica, a leitura feita pelo leitor pode coincidir
ou não com a do autor ou simplesmente ultrapassá-la. Assim, a religião está
marcada na pele como forma de manifestação de um sentimento religioso difuso do
dono do corpo. Sentimento que não precisa estar vinculado a uma igreja ou
comunidade de fé, mas que lhe cria um vínculo com o seu grupo de iguais:
O mesmo sinal que
é experimentado por um como um enfeite corporal, para outro acompanha uma
experiência "espiritual" que marca a sua vida. (...) Se para os mais
velhos a tatuagem é um gesto meditado, ela dá aos mais novos um intenso
sentimento de existir, favorecendo o reconhecimento pelo grupo de pares.
(LE BRETON, 2010, p. 832.)
2.
A TATUAGEM COMO EXPRESSÃO RELIGIOSA
Imagens de Jesus, de Maria
,
dos santos ou de Buda, textos dos salmos (ou da Torá, do Korão ou dos
Upanishads), medalhas de São Bento,
figuras mais tradicionais ou mais modernas de anjos (e demônios), nomes e textos
em hebraico ou em latim. Segundo COSTA (2011, p. 2):
Carregados de significado, os desenhos podem
representar desde escolhas religiosas até fatos marcantes na vida de uma
pessoa, ou simbolizar seu lado psicológico e suas atitudes, afinal ninguém
colocaria em seu corpo algo definitivo que não tivesse algo a ver com seu gosto
ou maneira de ser.
Tudo pode ser tatuado em uma pele a fim de expressar um sentimento
religioso, que pode ser de gratidão, de dependência ou mesmo expressão de uma
moda, estando sujeita à lógica de suas variações. Peter BERGER (1973, p. 65) diria que:
O individuo moderno existe numa plausibilidade de
mundos migrando de um lado a outro, entre estruturas de plausibilidade rivais e
muitas vezes contraditórias, cada uma sendo enfraquecida pelo simples fato de
sua coexistência involuntária com outras estruturas de plausibilidade. (...) É
muito, muito difícil estar cognitivamente entre nous na sociedade moderna,
especialmente na área da religião. É este simples fato sociológico, e não
alguma mágica inexorável de uma visão “científica” do mundo, que está na base
da crise religiosa da plausibilidade.
Referendando a citação acima, D. HERVIEU-LÉGER (2008, p.
89-90):
Essa “religiosidade peregrina” individual, portanto, se
caracteriza, antes de tudo, pela fluidez dos conteúdos de crença que elabora, ao
mesmo tempo em que pela incerteza das pertenças comunitárias às quais pode dar
lugar.
Essa nova expressão de espiritualidade (no dizer de P. BERGER,
“
um rumor de anjos”) não se
caracteriza por uma adesão a um grupo religioso (crença). Expressão de uma fé
difusa pode expressar um desejo e uma face religiosa sem mesmo estar ligada a
uma crença particular. Haja vista o número cada vez maior dos “sem religião”
nas declarações do Censo do IBGE. Não quer dizer que haja um aumento do
“ateísmo
”,
já que o próprio ateísmo é uma crença particular, um grupo militante
determinado contra a religião e suas manifestações “obscuras”. No grupo dos
“sem religião”, o que se observa é um número grande de pessoas decepcionadas
com a crença de sua fé (= igreja ou comunidade religiosa) que dizem poder ser
religiosas sem igrejas definidas. Desse modo, não abandonaram sua religião,
apenas abandonaram suas igrejas por falta de plausibilidade ou de coerência
. Caracterizadas
por um
patchwork
da fé, a pós-modernidade
se
encarna no grupo dos “sem religião”. Ironicamente, o grupo que mais tem
crescido na população brasileira nas últimas décadas.
3.
TATUAGEM: UMA FORMA DE SER RELIGIOSO?
Inscrições sob a pele são tradicionalmente, em muitas
culturas, ritos de passagem. O tatuado (ou sua comunidade) expressa que algo
morreu e iniciou uma nova vida. Vida e morte são temas absolutamente humanos e
ligados à religião, sob quaisquer formas. O renascimento da tatuagem como forma
cool de ser está ligado a uma cultura
da imagem contemporânea e a um renascimento da manifestação religiosa,
fenômenos que – para nós – estão absolutamente ligados.
VAN GENNEP, quando fala dos ritos de passagem, mostra que
eles são normalmente formas de marcar a saída da puberdade e ingressar no
universo adulto de um grupo cultural:
A distinção entre puberdade física e puberdade social é
ainda mais nitidamente observada em certas cerimônias dos Toda. (2013, p. 75)
(...) No fundo, os semicivilizados (sic!) não
procuraram muito longe, mas fizeram cortes em órgãos que, como o nariz e as
orelhas, atraem o olhar porque fazem saliência e podem, em consequência de sua constituição
histológica, sofrer todos os tipos de tratamento sem causar dano nem à vida nem
à atividade do indivíduo. (...) As
mutilações são um meio de diferenciação definitiva. Outras há como o uso de
vestuário especial ou de uma máscara, ou ainda as pinturas corporais (sobretudo
com minerais coloridos) que marcam uma diferenciação temporária. São essas que
vem desempenhar considerável papel nos ritos de passagem porque se repetem a
cada mudança na vida do indivíduo. (2013, p. 76-77)
Se considerarmos um rito de passagem, a pessoa que faz uma
tatuagem em sua pele estará querendo fazer um batismo? Seria então uma forma de
se iniciar em um grupo? Mas que grupo? Se considerarmos a posição privilegiada
de um antropólogo há muito ligado à juventude contemporânea, como LE BRETON,
vamos suspeitar que a tatuagem é a ritualização
de si mesmo, um rito de passagem para a vida adulta a partir do sentido que
brota internamente ao indivíduo:
A juventude é um tempo de espera, um período de tateio
propício à experimentação de papeis, à exploração do ambiente, à pesquisa dos
limites entre si mesmo e os outros, entre si mesmo e o mundo; é uma busca
intima de sentido e de valores. (...) Por ocasião da adolescência, realiza-se a
simbolização do ato de existir e o ingresso ativo, como parceiro com todos os
direitos, em uma sociedade em que é possível experimentar em si mesmo o gosto
de viver. (2009, p. 32-33)
Se seguirmos a pista de LE BRETON, teremos que dizer que o
símbolo tatuado brota da “necessidade
interior” (mesmo que esteja alicerçada também na moda em vigor). Assim, as
tatuagens religiosas seriam um rito de passagem de dentro para fora:
um desejo interno realizado para se integrar ou ligar a um grupo exterior de
sentido vital. Uma forma de expressar o self.
Conversando informalmente com um padre salesiano
,
ele me disse que já foi solicitado que benzesse uma tatuagem. E que ele o fez
como qualquer imagem, já que era uma imagem religiosa.
Como a bênção é uma forma de validação grupal, além de ter outros
significados, poderemos dizer que o indivíduo queria uma validação da sua
igreja de um desejo interior expressado pela tatuagem. Um desejo interior que
precisa ser validado exteriormente pelo
grupo religioso. Será que alguém da família ou dos amigos da igreja condenasse
a feitura de uma tatuagem e para isso seria preciso dizer que ela foi abençoada
(= validada pelo sacerdote do grupo)?
Claro que essas são conjecturas que deveriam ser mais bem investigadas e aqui
foram colocadas apenas como exemplificação do argumento principal.
Concordamos com o raciocínio de LE BRETON em que a tatuagem é
um rito exterior mais brando (soft) do
que ritos de ordália (mais brutais),
que põem em risco a vida ou a integridade física de jovens com maiores
dificuldades interiores de fabricar o próprio sentido da existência. Como
fabricação do próprio conteúdo, a tatuagem toca no tema da autonomia identitária.
Ela confere – através de uma interpretação própria do símbolo religioso – uma
possibilidade de significação individual do símbolo que funciona ao mesmo tempo
como síntese
pessoal e como possibilidade de sentido interior.
Algo que se poderia chamar de expressão do núcleo duro da religião pessoal de
quem coloca uma tatuagem religiosa em sua pele. O corpo é dele, o significado é
dele, embora o símbolo usado seja anterior à tatuagem e o significado coletivo
para quem vê possa ser diferente do que o dono da pele lhe confere.
O símbolo na pele reflete o interior do significado
religioso da tatuagem e lhe refrata (BAKHTIN, 2006) o que o indivíduo conseguiu
sintetizar do que recebeu, quase um feedback
da catequese recebida, direta ou indiretamente, daquele grupo religioso. Embora
não precise manifestar uma adesão ao grupo, a tatuagem expressa uma forma de
devolução interpretativa do que se absorveu como hermenêutica pessoal. Uma
análise psicológica e antropológica da tatuagem cabe na possibilidade de visão
desse fenômeno, embora seja muito além desse texto.
4.
O ESPAÇO ESTÉTICO E A PRESENÇA DE DEUS
Bento XVI e Lúcia Pedrosa DE PÁDUA nos lembram de que entre
os espaços em que Deus se manifesta a uma
pessoa está o espaço da beleza. A Catequese
da Beleza de Bento XVI ficou famosa, inclusive nos meios católicos. Lá
Bento XVI (2011) aponta algumas formas de beleza estética que nos levam até
Deus: as catedrais góticas e as igrejas românicas; as músicas clássicas (J. S.
Bach) e a música sacra; quadros e afrescos; a natureza. Bento aponta para obras
antigas e já consagradas. Aqui se manifesta o seu senso clássico e europeu: a
busca da beleza em obras consagradas é a via mais fácil de fazer. Mas ele tem
razão ao afirmar:
A visita aos lugares de arte,
portanto, não seja somente ocasião de enriquecimento cultural – embora também
isso – mas, sobretudo, possa tornar-se um momento de graça, de estímulo para
reforçar o nosso vínculo e o nosso diálogo com o Senhor, para parar e
contemplar– na transição da simples realidade exterior à
realidade mais profunda que expressa – o raio da beleza que nos
atinge, que quase nos "fere" no íntimo e nos convida a subir a Deus.
(p.2)
A teóloga DE PADUA (2013), seguindo uma via mais mística
aponta outras possibilidades da manifestação da transcendência de Deus. E
chegando ao espaço da beleza, aponta ainda para o campo científico, incluído
como espaço de beleza. E para o âmbito ético, que faz que a fé resplandeça em
boas obras.
Se for verdade que a obra de arte expressa mais do que se
pode pensar num primeiro momento – ou como diria Bakhtin, um símbolo reflete e
refrata e não se acaba na intenção de quem o criou, mas se refaz em relação com
a interpretação/leitura do leitor – o desafio aqui é pensar não nas obras
clássicas e já consagradas, mas pensar nas manifestações contemporâneas das
obras de arte. Aqui se inscreve o esforço em pensar a tatuagem como forma de
manifestação de um artista ou de manifestação de uma pessoa que quer que o seu
corpo esteja marcado e inscrito com um desenho que expresse algo de religioso.
Como Lúcia DE PÁDUA, podemos falar aqui de espaços de Deus. Eu diria novos
espaços de Deus. Espaços de expressão artística, mas também espaços de desejos de Deus. Se for verdade que a
sociedade atual desinstitucionalizou a religião, será também verdade de que a arte pop da tatuagem é um novo espaço
para os artistas e para os que sentem falta de Deus no espaço público. Ou para
os que querem expressar os seus sentimentos religiosos em um espaço público e
provado ao mesmo tempo, como é o corpo. Por ele, nossas relações e
inter-relações humanas acontecem, sendo ao mesmo tempo um espaço privado e
público. Um espaço público que não pode ser regulado pelas leis até agora
inventadas. Se na Europa e em outros países, se pode proibir de se levar um
crucifixo ou uma burca em público, não se pode proibir de se fazer uma
tatuagem, já que o corpo é espaço privado, embora também proporcione inter-relações
públicas.
Assim, as tatuagens religiosas podem expressar uma forma de
expressar surda de um desejo da criatura pelo seu criador. Uma forma de
expressão e manifestação que ainda não tem um canal mais próprio e politizado,
mas um canal que expressa um desejo das novas gerações. De gerações que se
manifestam em uma sociedade do espetáculo com formas imagéticas de se
expressar. Mais do que com palavras, a comunicação tem sido feita por imagens
que expressam conceitos. Nesse círculo hermenêutico parece repousar a linguagem
da tatuagem como expressão e manifestação de um sentimento religioso que parece
brotar de dentro do humano e se fixar em sua pele. Um verdadeiro espaço de
manifestação de um Deus que quer se revelar e se sentir próximo do humano. De
um humano que – mesmo inconscientemente – parece exclamar como AGOSTINHO:
Tarde te amei, Beleza tão antiga e tão nova, tarde te
amei! Eis que estavas dentro de mim, e eu lá fora, a te procurar! Eu, disforme,
me atirava à beleza das formas que criaste. Estavas comigo, e eu não estava em
ti. Retinham-me longe de ti aquilo que nem existiria se não existisse em ti. Tu
me chamaste, gritaste por mim, e venceste minha surdez. Brilhaste, e teu
esplendor afugentou minha cegueira. Exalaste teu perfume, respirei-o, e suspiro
por ti. Eu te saboreei, e agora tenho fome e sede de ti. Tocaste-me, e o desejo
de tua paz me inflama. (1999, p. 285)
As tatuagens religiosas na pele de tantos homens e mulheres
de hoje manifestam inconscientemente o desejo
de Deus e – ao mesmo tempo – um sentimento de religiosidade que brota de
dentro pra fora. A pele se torna um solo
sagrado lugar inesperado de manifestação de Deus numa sociedade de tantas
opressões: como a sarça para Moisés. Lugar
da surpresa do profeta e da experimentação de um sagrado que surpreende.
(Ex. 3)
5.
TATUAGEM COMO BANDEIRA A SER LEVANTADA?
Quando se fala de secularismo, posso pensar em três formas
básicas:
·
Secularismo
pelo excesso (normas, discursos, condenações morais, etc), que supõe certa
forma de legitimação da religião;
·
Secularismo
pela negação da plausibilidade exterior da religião, que supõe que a
religião deveria ser destruída (falência de fora pra dentro pela proibição ou
pelo ataque à religião) ou finalizada (falência de dentro pra fora, pelo
abandono dos fiéis);
·
Secularismo
pela carência de coerência do discurso e da prática religiosa dos líderes
dos grupos religiosos em geral. Discurso pacifista e decretação de guerras
religiosas de todos os tipos estão nesse rol.
O primeiro tipo foi apoiado pelo Vaticano II quando fala da
autonomia das realidades terrestres e da positividade do termo mundo, não mais
encarado como entidade religiosa anti-Deus, mas como sociedade de humanos que
tem graça e pecado misturados nela. Mas esse tipo de secularismo a religião
continua com a sua plausibilidade social embora com uma margem de ação
diminuída em relação ao passado. Quando o Vaticano II diminui os ritos e
simplificou as fórmulas, traduzindo para a língua vernácula, estava apoiando
esse tipo de secularismo. O que se chamava de aggiornammento da Igreja era de fato um desvestir-se, um
simplificar-se, um valorizar ações que antes eram vistas como heresias, como
contra a religião e contra Deus. Mas a plausibilidade da religião e de seus
representantes nunca foi tocada, continuava a mesma, embora com uma lógica que
queria ser menos afinada coma a filosofia e com a política do que com o
Evangelho de Jesus.
O segundo tipo é o secularismo pregado por certas correntes
da filosofia (e do ateísmo) que combate a religião pelos seus excessos do
passado e pelo ataque no presente. É a postura de quem se tornou combatente
contra todo tipo de pensamento religioso, inofensivo ou combativo. Deus não
existe, isso deveria ser evidente, deverá ser demonstrado e todo tipo de
embaixada do divino na terra (religiões) é sempre um desserviço a toda a
humanidade. Embora ainda vivo em vários bastiões, esse é um tipo de secularismo
militante que se manifesta em ser tão religioso em seu fervor quando os
discursos e representantes religiosos que combate. Recentemente, gerou até uma
postura tão militante que agora se tornou missionário: faz propagandas em
ônibus (Londres) e em outdoors (Porto
Alegre).
O terceiro tipo, que foi bem teorizado e descrito por HERVIEU-LÉGER, é o
secularismo que gera o peregrino religioso que não mais caminha de um lugar a
outro em busca de um solo sagrado, mas aquele que peregrina de um grupo
religioso a outro buscando a coerência interior dos discursos e dos líderes que
se enquadre na sua visão de coerência religiosa.
Os
dois tipos de secularismo anteriores descritos ainda existem, mas tem lá seus
nichos. O primeiro é combatido internamente pela corrente tradicionalista que
crê que não se deve desvestir a religião dos seus excessos, mas devem-se
conservar tudo como está, mesmo que sejam tradições que não remontem às mais
antigas tradições e que acabem gerando fundamentalismos dos mais diversos.
Nesse caso, temos aqui tanto cristãos, como judeus, como hindus, como
muçulmanos combatendo esse tipo de secularismo.
No
segundo tipo, temos uma guerra entre ateus e religiosos de todos os credos e
cores, gerando morte e destruição por todo lado, especialmente da lógica mais
simples: combater a guerra não se faz com terror, mas com gestos de inclusão,
fraternidade e perdão, que geram novas relações que irão frutificar em paz,
interna e externa.
O terceiro tipo, o do peregrino religioso parece repousar na
força da coerência interna que os grupos religiosos não estão conseguindo
passar para seus membros, por mais catequese e formação de seus membros que
isso tenha custado. O que leva o peregrino a sair de seu espaço todo dia e
caminhar até o local sagrado é a esperança de que uma hora a caminhada irá
acabar e que o solo sagrado irá estar aos seus pés. Se atualmente as pessoas
caminham de grupo religioso para grupo religioso, o que está em jogo não é a
plausibilidade da religião (nunca negada), mas a plausibilidade de coerência
interna e externa dos discursos e da vida dos grupos religiosos. Por isso,
socialmente, o fenômeno aparece na pós-modernidade (modernidade tardia, como
queiram) como trânsito religioso.
A religião não é negada em si, mas se está procurando qual
grupo é melhor de se viver. Hoje não basta ter nascido nesse ou naquele grupo e
ter sido configurado vitalmente por tradições essas ou aquelas. A religião que
se procura como solo sagrado a se pisar é um espaço de plausibilidade interior.
E isso, segundo as tradições cristãs, só será possível de ser achar quando a
Nova Jerusalém descer do céu, no final dos tempos (Ap. 21)
Todo peregrino sonha com o final de sua peregrinação, com
chegar ao solo sagrado tanto esperado e almejado. No caso do atual peregrino
religioso sonhar achar um grupo perfeitamente coerente de discurso e de vida
não é uma coisa fácil e beira ao esforço sobre-humano e suicida dos índios
Guaranis procurando a Terra sem Males. Um mito que eles preferiam morrer a
admitir o final da caminhada. Os Guaranis morriam sonhando e andando em busca
dessa terra prometida.
Mesmo procurando um grupo religioso para chamar de seu, os
atuais humanos do século XXI não rejeitam a religião como espaço de
plausibilidade social, embora critiquem os seus excessos e admitam que se possa
trocar de grupo religioso, pois se Deus é absoluto, as religiões são muito
relativas. Isso dá a todos um sentimento de que as relações religiosas (assim
como todas as outras) são líquidas (BAUMAN) e estão aí para se adaptar aos
recipientes em que são colocadas.
Por isso, mesmo em um ambiente secularizado como a das
sociedades atuais há a possibilidade de se levantar a bandeira do religioso,
mesmo de forma particular e individual. O sentimento e a percepção de muitos de
que existe uma religião indiferenciada e amorfa (que não gera prática e ligação
concreta com um grupo religioso, em forma de adesão) é verdadeira. A religião
não perdeu a sua plausibilidade, apenas perdeu espaço institucional na atual
sociedade. Autores antigos diziam que o homem é um animal religioso e
possivelmente têm razão. A tatuagem religiosa parece ser uma forma de
plausibilidade interior projetando ao exterior. Seria ela uma forma de
transgredir o discurso antirreligioso de muitos ou de transgredir o próprio
discurso religioso que dizia para não fazer tatuagens no corpo porque eram
formas satânicas de ser? Não parece que uma tatuagem de Jesus Cristo, de Nossa
Senhora (em suas diversas formas) ou mesmo de Gandhi ou Buda sejam formas de se
cultuar o demônio, embora essas formas satânicas também existam em pessoas que
fazem as suas tatuagens. Tatuar o demônio parece ser tão religioso como tatuar
Jesus Crucificado na pele, embora tenha significados diferentes. Seriam transgressão
ou não? Transgressão a quem e por quê? Uma tatuagem parece mais uma bandeira
empunhada a favor da religião do que do discurso secularista que tenta abolir e
proibir toda religião na sociedade do século XXI. O mesmo fenômeno que gera a
tatuagem religiosa também gera o discurso religioso na música e na poesia, nos
blogs e nas críticas dos homossexuais à homofobia dos discursos religiosos. A
religião não foi descartada com a evolução e o aprofundamento da ciência, mas
parece conviver bem com ela. Podem-se
encontrar crucifixos e ícones religiosos até em estações espaciais habitadas
por astronautas. E o tema religioso não é estranho a bilheterias de sucesso no
cinema comercial (Harry Potter, Percy
Jackson, A Paixão de Cristo, Anjos e Demônios, Noé, Thor e muitos mais) e
em séries televisivas (Sobrenatural, Grimm). Há ainda muitos roteiros
literários e de cinema que tem a discussão sobre a religião embutida em muitos
aspectos. E há tantas capas de revistas que vendem o fenômeno religioso, tanto
de forma positiva como de forma negativa. Esses são só alguns exemplos de uma
religiosidade diária que não escapa da vida de ninguém.
A existência de uma atitude religiosa difusa nesse século,
embora os teóricos do século XIX e XX cressem que a religião iria ser abolida
com a ciência
,
parece dizer que o que se critica hoje não é a religião em si (ou mesmo a
existência de Deus), mas os grupos religiosos que tem discursos incompatíveis
com as suas crenças e práticas. O fenômeno do trânsito religioso, apurado no
Brasil e em outras partes do globo terrestre parece não só ser parte de uma
globalização geral, mas ser coerente com a incoerência de muitos grupos
religiosos. Buscando uma lógica interna forte e fiel a si mesmo, o peregrino
religioso descrito por
HERVIEU-LÉGER
parece ser um ser dotado não só de conformidade com a própria tradição
religiosa, mas carente de exercer o seu próprio livre arbítrio e a sua
autonomia religiosa.
6.
Ideias à flor da pele
Numa sociedade que se manifesta mais com ícones do que com
palavras e discursos, as tatuagens religiosas são formas poderosas de expressão.
Se na sociedade ocidental do século XXI qualquer um tem possibilidade de
construir – das mais diversas formas – o próprio corpo como auto escultura, o
desenho na pele não só manifesta uma forma de expressão (como histórias em
quadrinhos - HQ). Mas se torna uma forma de auto expressão religiosa, em forma
de ausência
(desejo) ou de presença (bandeira a ser hasteada). Como forma de ausência,
torna-se uma manifestação de enfrentamento de uma sociedade que quer ser
oficialmente não religiosa. Como forma de presença, manifesta-se como bandeira
hasteada, mostrando que o sentimento religioso (mesmo que vago) é um valor
importante para a pessoa que se fez marcar na pele.
Também a tatuagem religiosa é uma forma de transgredir, não
só a religião oficial, mas também a sociedade secular, manifestando-se como moda
religiosa. Fator de consumo efêmero, mas também de permanência tanto
histórica como sentimental. E, sobretudo, espiritual. Um espiritual que ainda
não chega a ser especificamente cristão, mas que aponta um campo fértil para
uma atitude de fé mais profunda e enraizada no Evangelho.
Referencias bibliográficas
1. AGOSTINHO
– Confissões – trad. de J. O. Santos
e A. A. de Pina. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Coleção Os Pensadores).
2. BAKHTIN,
Mikhail - Marxismo e filosofia da
linguagem - 12ª Ed. HUCITEC, 2006.
3. BAUMAN,
Z.; DONSKIS, L. – A cegueira moral: perda
da sensibilidade na modernidade líquida – trad. Carlos A. Medeiros. Rio de
Janeiro: Zahar, 2014.
5.
BERGER, P. L. – Um rumor de anjos – a sociedade moderna e a redescoberta do
sobrenatural – trad. Waldemar Boff. Vozes: Petrópolis, 1973. Coleção
Antropologia 4. 128 p.
6. BÍBLIA
DE JERUSALÉM – trad. em língua portuguesa baseada na nova edição francesa,
inteiramente revista e aumentada (Éditions du Cerf, Paris, 1973), São Paulo:
Paulinas, 1982.
7. BONHOEFFER,
D. – Resistência e submissão: cartas
e anotações escritas da prisão – trad. Hélio Schneider. São Leopoldo – RS:
Sinodal/EST, 2003.
8. COSTA,
L. A. G. – Tatuagens de A a Z: tudo
o que você sempre quis saber sobre tatuagens e seus significados. Curitiba: A.
D. Santos Editora, 2011.
9. DE PADUA, L. P. – Espaços de Deus: pistas teológicas
para a busca e o encontro de Deus na sociedade plural, p. 21 – 46. In: DE
OLIVEIRA, P. R.; DE MORI, G. (orgs.) – Deus
na sociedade plural: fé, símbolos, narrativas. São Paulo: Paulinas, 2013.
11. FERNANDES,
S. R. A. (org.) – Mudança de religião no
Brasil: desvendando sentidos e motivações. Rio de Janeiro: CNBB/Palavra e
Prece, s.d. (Coleção CERIS)
12. HERVIEU-LÉGER, D. – O peregrino e o convertido: a religião
em movimento – trad. João Batista Kreuch. Petrópolis: Vozes, 2008.
13. IRWIN,
W.; BASSHAM, G. (orgs.) – A versão
definitiva de Harry Potter e a filosofia: Hogward para os trouxas – trad. G. L.
Libralan. São Paulo: Madras, 2011.
14. LE
BRETON – Antropologia do corpo e
modernidade – trad. Fábio dos S. C. Souza, Petrópolis: Vozes, 2013.
15.
LE
BRETON, D.; MARCELLI, D. – Dictionnaire
de l´adolescence et de la jeunesse. Paris: Quadrigue/PUF, 2010.
16. VAN GENNEP, A. – Os ritos de passagem – trad. Mariano
Ferreira. Petrópolis: Vozes, 2013. (Coleção Antropológica)
Não se pode esquecer que a atitude de patchwork não deixa que a vida seja
interferida pela fé. Assim, as normas morais não são regidas por uma moral
extrínseca, ditada pelos dirigentes do grupo, mas por uma moral intrínseca – coerente
ou não – ditada pela própria autonomia/dependência moral.