terça-feira, 24 de novembro de 2009

artigo apresentado na UNISINOS - RS

TEOLOGIA E ADOLESCENTES: PROBLEMAS DE BASE

Paulo F. Dalla-Déa,
doutorando em Religião e Educação
pela Escola Superior de Teologia (EST),
São Leopoldo – RS
paulo_fernando@hotmail.com

A piada dos morceguinhos , tão propalada nos meios eclesiais, apenas mostra a fenomenologia do problema de relacionamento entre a Igreja (instituição eclesiástica) e os adolescentes urbanos. Os adolescentes só estão esperando a oportunidade de ser crismados (sic!). Isso é o que diz a piada, discurso informal e forma de expressão da opinião de muitos na igreja.
Sei que muitos estão mesmo esperando a crisma, como sua forma de abandonar a igreja. Será a cerimônia de despedida de muitos. Mas porque isso tem que ser assim? Ou melhor, por que é assim? A piada mostra o seu lado cômico ao saltar da lógica dos morcegos para a lógica humana, justamente quando mostra o seu lado perverso. Adolescentes também atrapalham as celebrações eclesiásticas? Qual o relacionamento do clero (pelo menos parte dele) com os adolescentes?
Sabe-se que o clero, conceito plural e coletivo, não é uniforme. Não se pode iludir que o clero seja um conceito sólido e sem rachaduras; muito pelo contrário: no conceito cabem os mais diversos tipos de padres (e pastores). Desde os mais politizados, passando pelos personalistas, até os mais tradicionais e pentecostais. Há uma gama muito grande de tipos e personalidades envolvidas por debaixo do coletivo clero . Infelizmente, não conheço que haja algum estudo assim com relação ao clero. O estudo (além de curioso!) seria bastante ilustrativo para se perceber as variantes, as limitações e as possibilidades das tribos clericais e dos agentes de pastoral.
Também não se pode falar de adolescentes ou jovens (conceitos diferentes, não podemos esquecer disso!) a partir de um conceito coletivo sem questionamento. Não há um tipo padrão de adolescente ou de jovem. Apenas a mídia eletrônica tem esse tipo padrão. Jovens de classe média ou alta não tem os mesmos sonhos, comportamentos ou perspectivas de vida do que jovens de classe baixa ou pobres. Podem desfrutar da mesma faixa de idade, mas as condições materiais de vida são diferentes, resultando em padrões muito distintos. E não é só isso: mesmo jovens de mesma faixa etária e classe social formam tribos diferentes, segundo muitas outras variantes. Mas essa já é uma discussão antropológica urbana.
Ao falar de moda masculina, Glória Kalil faz em seu livro a distinção entre tribos urbanas , baseada em conceitos e autores da história (Boris Fausto), filosofia (Marilena Chauí) e da etnologia (Sylvia Caiuby Novaes). Não devemos entrar na discussão das tribos urbanas, pois seria um desvio do foco principal. Contudo, não pode deixar de ser registrada aqui. Há muitos antropólogos urbanos estudando as tribos urbanas de jovens, sua constituição, comportamento e relacionamento com a sociedade. Gostaria apenas de lembrar os cinco tipos de grupos possíveis (numa tipologia bem mais simples e acadêmica), segundo a visão de Roberto Daunis :
• Kids: mais jovens (mais ou menos 14 anos); mais ingênuos politicamente; otimistas com relação à vida; menos críticos com a sociedade e mais dependentes dos pais;
• Críticos leais: classe média, alguns trabalham e estudam (40%); pessimista com relação ao futuro e críticos com a sociedade e seus problemas; sentem-se integrados e tendem a se integrar em organizações de esquerda;
• Tradicionais: politicamente bem informados; idade média de 20 anos; confiam em políticos e apóiam os partidos mais conservadores; participam mais da vida de instituições como igrejas e ONGs; tem menor contraste de percepção da vida com os pais;
• Convencionais: jovens trabalhadores (média de 21/22 anos), com formação mais simples (poucos são estudantes universitários); vivem do seu trabalho, conservando-se longe da política e sentem-se pouco integrados ao mundo adulto;
• (Ainda) não integrados: são alunos de escolas ou que estão se preparando para o trabalho profissional; não têm o otimismo ingênuo dos kids, mesmo não achando o seu lugar no mundo adulto; são pessimistas diante do futuro e desinteressados pela política. Estão numa fase de transição.
É lógico que esse estudo é incompleto (faltam tantos outros tipos, que Glória Kalil – embora não sendo acadêmica -consegue registrar melhor). Também me parece lógico registrar que esta última classificação é referente mais à sociedade européia, já que os dados são de uma pesquisa na Alemanha (Shell, "Juventude 97"). Dito isso, não se pode esquecer que a subcultura juvenil hoje é um fenômeno capitalista e globalizado. Pelo menos, enquanto falamos de globalização ocidental .
Ao vermos essa classificação, quase que automaticamente, percebemos que os adolescentes e jovens que participam de nossos grupos eclesiais são os do tipo tradicionais, inclusive porque têm uma visão de mundo muito menos contrastante com relação à visão de seus pais e líderes eclesiais. A participação de muitos parece ser conseqüência de uma visão de mundo continuada a partir de seus pais. A religião é, ela mesma, uma parte da visão de mundo assumida .
Isso nos levanta alguns problemas teórico-práticos com relação à epistemologia do problema em curso:
• A opção preferencial pelos pobres e pelos jovens ainda é lembrada?
• Que tipo de lógica está por baixo da ação e das falas de nossos adolescentes e de nossos agentes eclesiais?
• Existe a passagem de uma oposição negativa (contra tudo – anarquismo) para uma posição contra tudo e a favor de algo (oposição positiva e política)?
• Nossos discursos eclesiásticos não são bom-mocistas demais?
Vejamos um pouco dos problemas aqui colocados:

a. Confusão de linguagem e realidade
Confundir adolescente com criança, jovem com adolescente é um erro grave, de base conceitual e pessoal. Não há adolescente que não se importe com isso. Quando a confusão é para cima, não há tanto problema: o adolescente quer logo se passar por jovem e o jovem por adulto. Mas – na maioria das vezes – a confusão é para baixo, o que transmite a impressão de um sentimento de rejeição e de desvalorização da pessoa, mesmo quando feito de forma involuntária.
Desde a minha tese de mestrado , mostrei que a confusão conceitual não é nova, mas vem evoluindo de forma positiva nos documentos da ICAR. O grande problema colocado pela confusão conceitual é que ela reflete uma preocupação pouca ou nula com relação à participação e valorização dos adolescentes e jovens na igreja. Embora se tenha um discurso que valoriza o adolescente e o jovem, isso de fato não acontece. O que se tem é um caso célebre de dupla mensagem: adolescentes e jovens só são chamados à participação em muitas comunidades para realizar o planejado (festas, serviços de mesa, de limpeza, mutirões, etc), mas não são chamados na hora do planejamento nem na hora de ser beneficiado pelo serviço comunitário realizado.
A confusão só reflete isso: a pouca importância dada aos adolescentes e às suas opiniões. Esse é já um caso crônico na ICAR (Igreja Católica Apostólica Romana): embora fale de sensus fidelium nos documentos do Vaticano II, as suas implicações nunca são respeitadas ou pensadas. Uma das críticas mais contundentes de Leonardo Boff à ICAR foi justamente isso: ela não tem uma opinião pública que reflita o sensus fidelium do Povo de Deus. Isso exige duas coisas: circulação de informação e de opiniões dentro da comunidade eclesial e escuta da opinião pública dos membros.
No nosso caso, isso é bastante agudo. Se alguns membros da hierarquia ainda escutam alguns membros do laicato , estes mesmos membros da hierarquia não escutam os adolescentes e os jovens, visto que não têm nem dinheiro nem experiência. Não são vistos como membros, mas como fiéis, a quem apenas cabe obedecer e servir. Algo como cidadãos de segunda classe ou incapazes , prontos a ser tutelados.
A confusão e o desleixo da linguagem é apenas a ponta do iceberg. Não é à-toa que os adolescentes não querem participar muitas vezes, de nossos serviços e festas eclesiais. Por acaso alguém os deixa participar do planejamento ou desfrutar do resultado obtido? Se a participação é exigida, a contrapartida de participação e de resultados é descartada, salvo honrosas exceções.
Contudo, a exortação apostólica Christifidelis Laicis dá um salto de qualidade quando afirma que os jovens devem ser mais do que protagonistas de sua evangelização: devem ser interlocutores da Igreja . A frase: “a Igreja tem tantas coisas a dizer aos jovens, e os jovens têm tantas coisas a dizer à Igreja”, do número 46 da Exortação, soa um pouco melancólica, mas muito desafiadora. O que seria que a Igreja têm a dizer aos jovens? A mensagem do Cristo, seus valores, o sentido que ele dá à vida? E o que os jovens têm a dizer e ensinar à Igreja? Sua alegria, sua fé na vida, seu método de trabalho descontraído, seu entusiasmo e sua paixão pelo humano? A Exortação deixa isso em aberto, como a dizer que há ainda um longo caminho a ser percorrido.
O fato de João Paulo II reconhecer que a Igreja precisa aprender com os jovens é de um valor fenomenal para a realidade da Igreja. Nela há grupos e pessoas que vêem os jovens com desconfiança e preconceito. Para esses grupos, o jovem é quase um rebelde sem causa, que precisa ser vigiado, tutelado. Sempre tratado como alguém que não é sujeito. Quase uma criança crescida, que não sabe bem o que faz, o que pensa. No texto pontifício os jovens ganharam estatuto de cidadania eclesial. Com direito a ser levados a sério como interlocutores da Igreja. Isso é um avanço significativo na qualidade e no método de trabalho pastoral com jovens e adolescentes. Se bem que nada acontece de modo automático: o documento e os seus conceitos ainda devem ser não só recebidos, mas absorvidos, digeridos e integrados no corpo eclesial.
Isso tudo leva tempo: anos ou décadas, para ser assimilado e digerido pela ICAR. Até sair dos documentos e entrar na realidade do cotidiano eclesial, demora muito. Enquanto isso não chega a ser verdade, já é um avanço o fato do documento mudar de posição e reconhecer a juventude como grupo que pode ensinar à Igreja, numa via de mão dupla. Isso possibilita levar a sério o que eles falam nas avaliações e nos planejamento eclesiais. Agora há uma nova e séria motivação teológica e pastoral, que pode e deve ser cobrada pelos adolescentes e pelos jovens nas comunidades eclesiais.
Mas cuidado. Alguém poderia ficar muito entusiasmado e confundir a teoria com a prática. Mesmo sendo um discurso do Papa, não se pode esquecer que ele é ainda discurso de cúpula e para se tornar prática na base ainda vai requerer muita luta e cobrança do lado mais fraco: é preciso que os adolescentes se armem dessa ferramenta ideológica para exigir os seus direitos eclesiais de participação efetiva.
Gostaria de apontar para um outro ponto, antes de passarmos adiante. É sobre as práticas pastorais da ICAR. Como se sabe, com raras exceções, a ICAR não recorre a métodos de medição sociológicos ou mesmo a um sistema de metas e resultados gerenciais. Isso possibilita que todo o trabalho pastoral fique desarticulado, confuso e cheio de boas intenções, mais do que de resultados. Os agentes de pastoral, membros da hierarquia ou do laicato, mais trabalham resolvendo ações reativas (problemas) nas comunidades do que planejando a ação e o trabalho concretos. Ações reativas tomam a maior parte do tempo do que as ações ativas.
Sem um método de trabalho claro, cheio de problemas por todos os lados, como concentração de poder e sem um parâmetro claro de metas e resultados, um agente de pastoral vai se focalizar apenas no processo e esquecer que o processo é para gerar resultados. Assim, a maioria dos agentes vai se contentar em reunir as pessoas e não se preocupar em medir se as metas foram ou não atingidas. Deste modo, a ação pastoral vai se desenrolar em ações pela ação. Reunir-se por reunir-se, sem resultados práticos.
Juntando-se isso a uma confusão intelectual de conceitos, como já foi demonstrada acima, o resultado vai ser uma grande mistificação. O discurso concreto e de resultados acabará fatalmente substituído por um discurso mistificador da realidade. É assim com o conceito família e é assim com a participação da juventude.
Gostaria que alguém pudesse apontar o que quer dizer família no discurso eclesiástico. Há alguém no planeta terra que não seja membro de uma família? Família é um conceito tão amplo que envolve pai, mãe, filhos, netos, avós, bisnetos, animais de estimação e tantos outros que se confunde com o termo humanidade. Dizer: é preciso trabalhar mais com as famílias! , também pode ser trocado para é preciso trabalhar mais com as pessoas (com os humanos)! Se qualquer pessoa no planeta Terra é membro de uma família (uma criança de 3 meses, um monge budista de 80 anos e um cientista celibatário de 35 anos, passando pelo Papa e por meu pai e minha mãe, além de mim...) essa frase não tem sentido algum. Mas serve para justificar qualquer ação que se faça na pastoral. Não é preciso ver metas, medir resultados ou fazer mais qualquer coisa.
Com juventude também é assim: existem jovens de 30 ou 40 anos na PJ, entre outros abusos encontrados. Dizer que se tem jovens na comunidade é a mesma coisa. Sempre se terá algum jovem participando na igreja. Mas será que isso justifica a falta de espaço de reunião, de medição de número de pessoas, de falta de ação para aglutinar e de falta de proposta de trabalho?
Resumindo, uma prática oculta e que crassa nas igrejas é a prática de um discurso mistificador, geral e justificativo de qualquer ação concreta. Essa confusão de linguagem e realidade só pode justificar um imobilismo de ação e uma falta de criticidade efetiva no discurso e na prática pastoral. Sem um discurso mistificador, a prática teria que se modificar para melhor e ter que apresentar metas e resultados. O excesso de atrelamento entre Teologia e Filosofia e a sua perduração por séculos fizeram com que a Teologia Pastoral fosse sempre deixada de lado, como uma disciplina menor no universo teológico e como uma “coisa” que qualquer um consegue fazer, até os mais incapazes .

b. Opção preferencial pelos pobres e pelos jovens
Desde Puebla, a ICAR assumiu o discurso de opção pelos pobres. Alguns membros dela também assumiram a prática desta opção. No Brasil, temos acompanhado nos últimos anos um refluxo inclusive do discurso.
Juntamente com a opção pelos pobres, foi assumida a opção pelos jovens . Também como discurso. Quando será que a ICAR vai assumir a opção pelos jovens?
A Pastoral da Juventude (PJ) têm assumido os jovens como opção preferencial como discurso e ação. Já desde antes da declaração de Puebla, mas a partir dela, a PJ lançou-se com convicção para o trabalho de nucleação com grupos de jovens, nas periferias e nos grandes centros. O problema é que a PJ, tão ciosa de seu discurso intelectualizado e de sua prática política comprometida, não consegue alcançar mais do que alguns jovens. Poucos para o universo dos adolescentes e jovens católicos. Não há um estudo sistemático e estatístico dessa realidade. Mas a experiência pastoral mostra que são poucas as comunidades em que existe uma PJ organizada. E – nas que existe – pequena é a percentagem de participação dos adolescentes e jovens na PJ .
A PJ tem se primado por tentar manter as duas opções de Puebla juntas: têm feito uma opção pelos jovens pobres. Isso pode ser visto no discurso e na prática pastoral da PJ.
Parece que alguns membros da ICAR, especialmente leigos de movimentos de espiritualidade neopentecostal, assumiram essa opção como forma de não assumir a opção pelos pobres. Estamos nos referindo à Renovação Carismática Católica (RCC). Se isso for verdade, a opção pelos jovens foi assumida como protesto e contestação pacífica contra a opção pelos pobres. Ou seja: assume-se os jovens para não assumir os pobres. Quase como uma espécie de escolha secundária ou mal menor. Assim, a opção pelos jovens está sendo vivida como opção à opção pelos pobres. Sim, até porque muitos dos jovens assumidos pela RCC têm perfil e/ou discurso de classe média. Na periferia das cidades quase não há grupos da RCC: os pentecostais são os que alcançam a juventude por lá. A RCC e a sua Secretaria Marcos (encarregada da juventude) apenas se instala nas sedes das paróquias ou nas capelas de bairros mais tradicionais. Isso mereceria um estudo mais detalhado, sociológica e teologicamente, que ultrapassa nosso texto.
O problema é que a RCC hoje está repleta de adolescentes e jovens em suas fileiras. São jovens e adolescentes que não têm autonomia (eles querem?) para decidir, já que as decisões importantes são tomadas pelos adultos do grupo. Os que decidem são jovens adultos, recém casados ou solteiros convictos. São, na maioria das vezes, pessoas bem clericalizadas, no discurso e nas vestes.
Assim, temos um problema epistemológico: apenas os que não optaram pelos jovens – como primeira opção – são os que têm maior sucesso entre eles? Qual o segredo disso? As perguntas seguintes, podem nos dar alguns indícios na direção de algumas respostas.

c. Lógica da ruptura versus lógica da identificação
É certo e comprovado que todo adolescente precisa viver o seu período como uma espécie de transição entre a vida e o corpo de criança e a vida e o corpo de adulto. Isso gera uma fissura, que não é física, mas é psicológica. Por isso que os psicólogos e outros especialistas, falam sempre de que adolescência é um período de luto .
Para que o adolescente cresça é preciso que ele responda à pergunta QUEM SOU EU? Bem ou mal, ele precisa responder a essa pergunta e para isso, ele recorre a dois expedientes básicos: afastamento das figuras materna e paterna e integração num grupo de amigos da mesma faixa de idade. Quase que, para descolar de seus pais, ele precisa apoiar-se em alguém. Como num grande castelo de cartas, onde cada carta apóia-se nas outras para manter o equilíbrio, que é frágil.
Ou seja: é a partir de uma lógica da ruptura que o adolescente constrói a sua nova identidade. Ele precisa da ruptura e da crise para adolescer plenamente. Caso contrário, será sempre alguém meio criança e meio adulto, no pior sentido do termo. Um adulto amplamente dependente é sempre um caso patológico a ser tratado .
Ruptura e autonomia parecem palavrões nos discursos eclesiásticos, onde o resumo da ópera sempre diz: obedeça, meu filho, que você vai entrar no céu. Fique eternamente dependente de alguém que lhe seja superior, que tudo irá bem! Ao menos os discursos mais tradicionais (e alguns personalistas), sempre podem ser resumidos nessas frases. Obedecer (= depender de, submeter-se a) é a virtude mais geral para muitos grupos religiosos, especialmente quando falamos dos discursos oficiais da ICAR . Podemos até dizer que o problema não está na ICAR, mas na lógica da identificação usada pelos grupos religiosos, também fora dos muros da ICAR.
A afirmação anterior merece uma explicação. Os grupos religiosos, ao trabalhar com adolescentes, tentam levar o adolescente para a igreja ou levar a igreja para o adolescente. Ou induzem o adolescente a freqüentar a igreja através de pressão (dos pais, do clero ou de obrigações morais). Ou tentam ir ao encontro do adolescente, falando uma linguagem mais moderna, mas ainda com a estrutura lógica da identificação, mesmo que seja apenas para favorecer o discurso de proteção, tão presente depois de 11 de setembro de 2001.
Acrescente-se aqui que a segunda proposta já representa um avanço com relação à primeira, porque vislumbra já uma preocupação em modernizar o discurso, mesmo sem ainda atualizar a prática. O problema é que sofre da mesma estrutura mental. Ou seja, tentam identificar (unir, colar, rejuntar) o adolescente com o corpo eclesial (igreja), justamente no momento que o que ele quer é se separar dela, assim como de sua família. Não dá certo, ou a identificação é provisória, apenas funcionando pelo tempo da catequese de crisma, por exemplo. Enquanto for preciso freqüentar a igreja para ser crismado, satisfazendo o desejo dos pais e da igreja para o futuro (casamento eclesiástico ou outras formalidades), ele irá e fará o mínimo necessário. Isso, se aceitar participar do jogo. Os que não aceitam já se rebelaram e estão em outra fase.
É preciso sair da lógica da identificação com a igreja e passar para um discurso de não-identificação com a igreja, mas com a pessoa do Cristo, visto como uma espécie de rebelde em relação às instituições de seu tempo. É preciso identificar o adolescente com o Cristo e não com a igreja . A igreja é vista como parte da família, da qual o adolescente quer se separar. O pai e o padre falam, na maioria das vezes, o mesmo linguajar da obediência. Não é ingenuamente que os adolescentes chamam de sermão a pregação do padre/pastor e a bronca do pai em casa.
O adolescente que se identifica com o Cristo, formará um grupo com os seus pares, virando uma espécie de missionário informal . Ele está na fase de formar grupos, quaisquer que sejam, desde que de formação horizontal. Esse grupo formado é já a igreja, que ele não identifica mais como sendo uma parte da família, mas uma parte de seus pares. A igreja vem como conseqüência segunda de uma identificação primeira com o Cristo.
Creio que isso fica mais esclarecido quando lemos D. Bonhoeffer – especialmente o livro Discipulado. A ruptura epistemológica que ele fala se dá aí: uma graça preciosa é necessária (ou uma conversão) para que o adolescente, rompendo com a religião dos pais , crie a sua própria forma de ser cristão. E quanto mais diferente da forma de seus pais, mais atraente para os adolescentes porque têm um caráter de rebeldia consentida (e contida). Adolescentes gostam de se opor, mas sem se arriscar muito. Seria esse o grande trunfo da Renovação Carismática Católica (RCC) e dos grupos pentecostais? Parecer ser novo (ou mesmo rebelde), sem de fato sê-lo? A resposta precisa de maior investigação, mas aqui já abrimos algum caminho ao apontar uma nova fonte, que é preciso levar em consideração.
Há um evidente equívoco na lógica da ICAR, que induz todos ao erro. Os documentos eclesiais, incluindo os que versam sobre catequese, falam de uma catequese contínua (ou de continuidade da catequese ), que é sempre entendida como uma catequese que deve não ter rupturas, na pedagogia ou na idade. Não deve haver saltos, mas continuidade ininterrupta. Uma outra leitura dos mesmos textos poderia falar de uma catequese orgânica e integral, não de uma catequese sem saltos. Digo isso, porque quero ressaltar que o atual processo integral de formação de personalidade por que passam os adolescentes é marcado por uma ruptura necessária. A adolescência é um período de luto:
• pela identidade infantil perdida,
• pelo corpo de criança que perdeu;
• pelos pais da infância.
A adolescência em si é uma ruptura. Ou seja: é preciso levar em conta o processo antropológico pelo qual passa o adolescente/jovem nessa idade até se tornar adulto no atual mundo capitalista. É preciso estar por dentro do processo de ruptura adolescente e trabalhar em vista disso. Quem tem ou teve adolescente em casa sabe bem do que estou falando: o adolescente quase que precisa ser do contra (e se afastar da opinião dos pais!) para saber quem ele é. É uma ruptura necessária e controlada: se não passar por este processo, a pessoa será eternamente uma criança grande, com acontece com alguns adultos que são eternamente dependentes. Sempre dependentes da opinião e da aprovação dos adultos e dos seus pais. E correm o risco de permanecer infantilizados e de não conquistar a autonomia de que precisam.
A catequese de crisma incide em cheio na fase da adolescência das pessoas em desenvolvimento. É a lógica da ruptura que perpassa a cabeça dos nossos adolescentes . E a Igreja (e os catequistas) está trabalhando com a lógica da continuidade .
Ou seja: a vida não se desenrola sempre sem rupturas, mas elas fazem parte da vida, necessariamente . É um elemento que podemos considerar como antropológico. E isso é ainda mais verdadeiro no caso dos adolescentes: a ruptura que eles têm é necessária. É a isso que chamo de lógica da ruptura. E ela faz parte de um processo integral de desenvolvimento humano. Para um correta compreensão da catequese integral, temos que assumir a ruptura como parte dela, sem querer exorciza-la.
Mas muitos ainda não aprenderam isso. E continuam trabalhando com adolescentes sem diferenciá-los das crianças. Assim, tratam a catequese de crisma com sendo uma super-primeira eucaristia , querendo aprofundar os conteúdos da catequese de primeira eucaristia. Não se pode trabalhar assim: se alguém quer que a catequese seja orgânica e integral (Catequese Renovada, 94) deve-se respeitar a organicidade do processo integral do adolescer humano. Só se adolesce (amadurece) rompendo com (coisas, pessoas e situações) para se unir a (outras coisas, pessoas e situações) que agora farão parte de minha história.
Em outras palavras: estamos trabalhando errado por excesso de idealização. Se quisermos trabalhar certo, teremos que considerar seriamente que a ruptura para a identificação é necessária para o adolescente. Precisamos fazer que a ruptura seja usada a favor da evangelização e não contra ela.
Ainda mais um elemento: desconfio seriamente de que a religião seja parte da família na mente das crianças, pois elas são levadas pelos pais às missas, celebrações, grupos de quarteirão etc. É como se a Igreja fosse uma extensão da sua família. Se esta hipótese for correta, quando a adolescência chega, a pessoa deve se desvencilhar da imagem dos seus pais que tinha na infância (normalmente) e – por tabela - também da religião dos pais. Afinal, não são eles que levam a criança para as celebrações da comunidade?
Isso explicaria a fuga de muitos adolescentes da comunidade eclesial (que continua tratando-os como crianças tarefeiras! ). E explicaria também o fato de que alguns adolescentes que tem pais não-participantes se tornem tão fervorosos na religião: vontade de protestar contra para achar quem se é. É claro que este não é o único fator explicativo do fato, mas incluo seguramente como um deles.
Se é verdade de que a religião dos pais precisa ser abandonada , também é verdade de que eles precisam também construir a sua própria religião. Ou os adolescentes entram em movimentos religiosos de conversão (ruptura com o passado) ou então, constroem sua religião através de bandas de rock, grupos de hip-hop, ou qualquer outra coisa. Ou seja: temos aqui uma religião secularizada, bem ao gosto da cultura capitalista pós-moderna.
Os adolescentes e os jovens não são a-religiosos: são religiosos do seu modo, porque não conseguimos apresentar uma forma melhor de vivência religiosa. Já que as igrejas tradicionais (ICAR, Luterana, Anglicana, etc) não conseguem falar a eles de forma inteligível, eles fazem o seu próprio discurso religioso.
Para terminar este ponto: precisamos construir um método catequético que inclua a ruptura com métodos e conteúdos para podermos fazer que os adolescentes se vinculem novamente a Jesus Cristo e por ele à sua Igreja . Atualmente estamos querendo fazer o contrário: vincular o adolescente à Igreja para chegá-los a Jesus Cristo. E isso se mostra ledo engano: nunca conseguiremos trazer primeiro os adolescentes para a missa a fim de estar com Cristo. Só eles, depois de se identificarem com Cristo, é que virão à comunidade de fé, que tem como expressão máxima de fé a Eucaristia. Jorge Borán reconhece que os movimentos de encontro da década de 1970, já trabalhavam a juventude de forma muito melhor do que estamos fazendo agora, pelo menos no que tange à nucleação de novos grupos entre indiferentes. Estes movimentos se preocupavam mais em identificar o jovem com o Cristo, para só depois trazê-lo à Igreja. Esta parece ser uma abordagem correta, do ponto de vista prático e teórico: a Igreja é a comunidade dos discípulos de Jesus Cristo Ressuscitado e não uma instituição que guarda a sua mensagem. É mais correto falar da Igreja como grupo de discípulos em viagem (Emaús, Atos dos Apóstolos) do que a identificá-la com um banco, que tem um cofre , por mais seguro e dourado que ele seja. Para isto, é preciso uma grande mudança de perspectiva hermenêutica na pastoral das igrejas tradicionais.

d. De uma oposição negativa (anarquismo) para uma oposição positiva (participação política)
Um primeiro passo é saber trabalhar com a lógica da ruptura e com um discurso revolucionário. Um outro passo é trabalhar a oposição negativa, fruto da idealização lógica do adolescente.
Todo adolescente chega um dia a ser cruel com os julgamentos que faz dos adultos e de seu mundo. É que a idealização do mundo e das pessoas é ainda bem grande. Não é mais a mesma do mundo infantil, mas na adolescência, a lógica abstrata desenvolvida ainda não encontrou o chão da experiência e ainda argumenta por hipóteses e realidade lógica. É um mundo ainda muito virtual: confunde-se a capacidade de raciocínio com a capacidade de realização . A oposição negativa de todo adolescente deve ser canalizada para uma oposição mais criativa.
Faço aqui uma diferenciação entre oposição negativa e oposição criativa: a primeira é aquela oposição em virtude da destruição de uma coisa, acontecimento ou pessoa. Toda pessoa tem isso dentro de si, mas ela é vazia de significado e tende a se mostrar sua utilidade na aniquilação de obstáculos e situações que vão contra a vida do sujeito. Esta oposição é caótica no tiroteio que promove, sem ter um alvo em mira, podendo causar estragos pelo número de balas perdidas que gera. A segunda é aquela que se tem em vista de uma nova construção ou ordem de coisas. E que deve ser geratriz de novos rumos e comportamentos em vista da destruição do antigo e da edificação do novo que se quer implantado.
Para uma oposição criativa conseqüente é preciso ter uma planta da realidade que se quer chegar (um alvo ou meta a atingir). É como na reforma de uma casa: é preciso perícia e visão clara para colocar abaixo apenas o que se precisa a fim de não dormir ao relento, enquanto se está mexendo com a estrutura velha em vista de uma nova casa para se morar melhor.
Canalizar a oposição negativa em oposição criativa é ver todos os problemas da atual conjuntura e da estrutura social e eclesial, confrontá-la com o Evangelho do Reino e articular um plano de ação bem preciso para a execução da mudança. Mas não se pode esquecer que é preciso articular dentro e fora. Será preciso de duas equipes de trabalho: uma dentro, que engendre a mudança eclesial pela participação na comunidade e outra fora, que negocie a mudança na sociedade, através das ONGs e outros projetos sociais (e até políticos). Para tal, será preciso apresentar a participação na comunidade e na sociedade não como duas instâncias opostas (como muitos vêem), mas como realidades complementares de um mesmo plano. O plano de ação deve conter passos dentro e passos fora. E ambas as equipes deverão ser apresentadas como sendo integrantes de um mesmo trabalho em vista da Boa-Nova do Reino.
Aqui pecam muitos dos nossos discursos e práticas eclesiais: estamos acostumados a separar e dividir, mas precisamos articular o trabalho, sem dividir o otimismo, sem prejudicar a visão e sem deixar de lado a utopia do Reino. Para que tal aconteça é necessário articular grupos de trabalho coordenado. Em três semanas, trabalhamos em rodízio nas necessidades mais urgentes do bairro e na semana seguinte, nos reunimos para discutir e articular o trabalho na Igreja. Assim, grupos de capoeira, visitas aos doentes e trabalho de alfabetização poderão ganhar o reforço adolescente e entusiasta das novas lideranças formadas na catequese de crisma e que poderão celebrar isso em comunidade, trazendo novas discussões e novas visões para dentro da comunidade eclesial, ajudando a renová-la e motivá-la para coisas menos eclesiásticas e mais evangélicas.
Nada mais irreal do que se opor a "tudo o que está aí". O que é "tudo o que está aí"? Esse discurso é vazio e barato. É fácil de fazer e de se identificar porque não fere ninguém, nem muda nada, porque não têm um alvo específico. Não tendo um alvo, não há quem atingir, a não ser por acaso, como numa bala perdida.
¡Hay gobierno, soy contra; y se no lo hay, soy contra también! Esse é o discurso do espanhol anarquista e que se parece ao de muitos adolescentes. É claro que isso é uma caricatura, mas ilustra bem a posição de muitos: são contra a igreja sem ser a favor de nada.
Esse discurso "rebelde" pode ser apenas uma fase e é mais comum entre adolescentes de classe média e alta. Para ser contra tudo é preciso uma boa educação crítica (que se consegue em bons colégios pagos pelos pais), algum tempo livre para pensar e discutir com seus pares (não se pode trabalhar e estudar para tal) e até mesmo se divertir (a diversão no capitalismo é privatizada e paga) nos finais de semana. É uma posição política boa para ser assumida pelas classes mais abastadas (ou por quem pode viver às custas de seus pais, o que dá no mesmo) e não precisa trabalhar e estudar. Por isso, tenho encontrado poucos "rebeldes sem causa" que sejam ao mesmo tempo trabalhadores em tempo integral.
Quando se é apenas contra e não a favor de algo, temos o típico rebelde sem causa (e sem religião). Esses ainda não foram atingidos pela igreja-comunidade ou o foram demais pela mídia massiva capitalista, distorcendo e caricaturizando a religião e os seus membros.
Pio XII, desde o seu tempo, já sabia que o melhor apóstolo para um jovem é outro jovem . Para se vencer essa rebeldia sem causa é preciso um esforço de evangelização inteligente. Não adianta padres e pastores, pais e avós (incluindo os tios mais velhos), professores e diretores de colégios – adultos em geral – falar, aconselhar e orientar os jovens, incluindo os mais rebeldes, a praticar a religião, a ir à missa ou outra coisas que tais. Se vamos levar a sério a recomendação do velho Pio XII, um adolescente só é alcançado por outro adolescente ou jovem. Alguém até 24 ou 25 anos, que é quando se sai da faculdade, casa-se ou começa-se uma vida de adulto. Até essa data, consegue-se fazer a passagem, mesmo para os adolescentes mais rebeldes.
Um jovem até 25 ou 30 anos, mesmo não sendo mais adolescente, ainda se consegue ter a rebeldia contida de posições idealistas e é isso que cativa os mais "desgarrados". Por isso, mesmo um adolescente mais jovem, quando tem a linguagem e a postura de um adulto, não consegue fazer muita coisa entre seus pares. É uma questão de liderança ideológica. E só alguém mais velho que não lhe faça o papel de pai poderá conseguir essa confiança necessária para a liderança. É preciso ser confidente e não pai para orientar alguém de rebelde sem causa para rebelde com causa. Contra algo e a favor de algo. É fácil notar que a segunda postura é mais realista e mais equilibrada. Menos rancorosa.
A Pastoral da Juventude (PJ) tem uma postura indulgente em nível pessoal, mas suas críticas políticas são muito intelectualizadas, não conseguindo ter um discurso compreensível por muitos adolescentes. Além disso, a PJ não conseguiu ainda ter uma postura personalizada para a recepção e o acompanhamento de novos membros. Quem entra num grupo da PJ começa a discutir assuntos com pessoas que tem muito mais tempo de caminhada, sem nenhuma introdução ou acompanhamento especial.
A RCC tem uma postura mais tradicional ideologicamente, mas tem uma acolhida e uma orientação personalizada exemplar, sendo feita por muitos pares adolescentes. O seu método de trabalho é em pequenos grupos, a que se chama de pastoreio . O pastoreio é um método simples: um jovem ou adolescente com algum tempo de caminhada orienta outros com menos tempo de caminhada, durante e depois das reuniões. É quase uma espécie de apadrinhamento. Há sempre reuniões de oração e formação periódicas com os pastores para se resolver os problemas concretos e ir direcionando para soluções.
É preciso orientação, aconselhamento e amparo concreto (poimênico) para adolescentes em todas as fases (especialmente para os mais rebeldes). Coisa que a pastoral tradicional da igreja não conseguiu atingir. Não é só um problema de método, mas de epistemologia pastoral: trabalhar a massa é diferente de trabalhar e acolher as pessoas. Alguém só se considera membro de um grupo quando é valorizado no varejo e não no atacado.

e. Bom-mocismo dos discursos eclesiásticos
Se o adolescente precisa romper com algo para se identificar com outra coisa, então precisamos apresentar o Cristo com o nível de conflito com a família que ele realmente tinha. Não há um só texto nos sinóticos que mostre uma relação harmônica entre Jesus (adolescente ou jovem-adulto) e sua família. Jesus não era um “bom garoto” como muitos gostam de enfatizar. Muito pelo contrário, nas passagens que menciono no rodapé da página, há a exigência de abandonar pai, mãe e irmão para ser discípulo de Jesus.
O grande problema é que sempre atendemos para a submissão que Lucas se refere num único texto, após o conflito de Jesus aos 12 anos. Nesse texto lucano, vemos Jesus em conflito com os fariseus (“...sentado em meio aos mestres...” – o que denota uma atitude de igualdade) e com sua família, a quem recrimina (tendo em vista a vontade do Pai). Mas isto não é falado. Apenas é sempre enfatizado o aspecto da submissão do texto.
Em outros termos: para ser discípulo de Jesus é necessário ser alguém que não questiona ou que aceita passivamente a posição de inferioridade causada por uma infância estendida além do tempo. Segundo estes termos, para ser discípulo de Jesus é necessário ser um adulto que se comporta como criança: alguém que é eternamente dependente , no mau sentido da palavra. É justamente deste tipo de raciocínio que os adolescentes (e os jovens também) zombam e ridicularizam. É disto que eles fogem: ser cristão assim equivale a ser eternamente dependente de algo externo. É perder a própria autonomia.
Por isto, precisamos restaurar um discurso em que ser discípulo de Jesus seja uma espécie de revolta contra algo. Uma revolta que seja controlada, mas que seja revolta contra a religião dos pais. Só assim eles terão motivos para se identificar ainda dentro da comunidade eclesial . Os mesmos adolescentes que precisam ter uma ruptura de passagem de uma fé recebida (vivência religiosa dos pais) para uma fé assumida (vivência religiosa própria) precisam ter espaço e linguagem para se rebelarem, continuando com Cristo. É muito saudável a para nova geração que ela tenha vontade de mudar o mundo . Mas para tal, é preciso que eles sonhem com um mundo possível, onde a comensalidade da proposta de Jesus não seja apenas uma miragem, mas uma sadia revolta contra este mundo, que deve ser substituído por um mundo outro e não um outro mundo.
O problema é que a ICAR tem dificuldade – por se tratar de uma instituição secular e com larga tradição em estar atrelada aos favores do poder civil – em suportar um discurso que seja minimamente revolucionário ou contestatório. Qualquer sinal nesta direção cheira a perigo grosso . E isso não só por parte das instâncias oficiais, mas também está enraizado no “inconsciente coletivo eclesial”: muitos pequenos grupos e muitas pequenas lideranças têm aversão a qualquer tendência minimamente revolucionária. Até parece que bom catolicismo é catolicismo conservador ou mantenedor do status quo. E é para isso mesmo que pessoas com algum poder de mando têm interesse na religião: ela servirá para amansar, sossegar, sujeitar e tornar bonzinhos as pessoas (crianças, adolescentes e mesmo adultos). É só ver para que diretores de escola, diretores de presídio e agentes penitenciários, prefeitos e juízes gostam da presença de pastores e agentes de pastoral nestes ambientes. Com o discurso religioso, amansa-se a fera humana que existe em cada um de nós e brota com força nestes lugares. Karl Marx tinha razão em partes: se a religião não for o ópio do povo, ela não será bem quista por muitos.
Assim, o discurso bom-mocista é sempre incentivado e acaba por cativar sempre as mesmas pessoas. Normalmente, jovens que fazem da comunidade eclesial uma espécie de família estendida onde o pai será sempre a autoridade e a mãe será sempre a afetividade simbólica de nossas liturgias. Assim, o “fiel” não correrá o perigo de crescer na fé, porque terá sempre quem lhe diga claramente o que e quando fazer, através das normas, usos e costumes católicos. Esse discurso bom-mocista, além de reforçar a dependência com relação à igreja e a seus ritos, contribui para eternizar um comportamento infantilizado e heterônomo, mais próprio de uma atitude pagã do que de uma atitude cristã. Nada próprio de um laicato que desejamos seja engajado e comprometido com a causa do Reino. Mas muito conveniente peara grande parte da hierarquia.
Qualquer tipo de adolescente que esteja com problemas de relacionamento na família tenderá a descartar este tipo de discurso reforçador da estrutura familiar tradicional, exemplar e arquetípica, porque não resolve o problema e dá razão sempre aos adultos (tendo ou não razão!). Assim procedendo, poderemos apenas trabalhar com alguns adolescentes, em geral os mais imaturos, que não conseguiram fazer a síntese pessoal com a negação da família. Ficamos, então, com uma percentagem bem pequena de adolescentes que aceitam ser passivos e que tenderão a sê-lo em outras circunstâncias da vida. O adolescente questionador e um pouco rebelde não é rejeitado, mas se auto-exclui através do tipo de discurso que fazemos . O que é bom para a instituição eclesial, que continua se achando sincera e apontando o problema para os adolescentes. “Eles é que não querem nada com a Igreja!”, concluem muitos, de forma conveniente.
Todo o resumo do discurso eclesial pode ser assim feito: obedeça aos seus pais, aos seus superiores, às autoridades políticas e religiosas! Ora, esse discurso é bom para crianças, que têm os seus pais como infalíveis, mas não para adolescentes, que tem os seus pais como geração a ser superada. Enquanto não gerarmos discursos que favoreçam a autonomia de pensar e agir por conta próprias, vai continuar difícil trabalhar bem com adolescentes. É de uma questão epistemológica que estamos falando. Não é possível trabalhar com adolescentes que querem autonomia (e precisam dela para se transformar em adultos!) com discurso e prática para crianças.
Fica-se admirado ao se fazer análise de discurso na igreja , tal é o número e a profundidade do bom-mocismo dos discursos eclesiais. Não se fala de Jesus como alguém que teve problemas de relacionamento com seus pais (Lc 2,41-52), ou que teve oposição de seus familiares, que o consideravam um idealista radical e queriam declará-lo louco (Mc 3,20-35; Mt 12,46-49 e Lc 8,19-20). Não se mostra a contestação de Jesus aos políticos e aos chefes religiosos e políticos da época (Mc 3,1-7; Mc 12,13-17), nem o desmascaramento religioso e ideológico de Jesus expulsando os cambistas do Templo (Mt 21, 12-17).
Não são doces as imagens de Jesus? Não são sonolentas a maioria das pregações e celebrações de nossos templos? Nada parece afirmar que Jesus é um homem pobre, trabalhador braçal e que desestabiliza o poder religioso e político por suas posições concretas e suas contestações bíblicas . Tudo parece afirmar que Jesus é um extraterrestre que baixou aqui já pronto e acabado, com discurso decorado e roteiro de uma peça de teatro. Fica-se com a impressão de que este Jesus de pele loira, olhos azuis e cara de alienado, que vemos em nossa simbólica burguesa , só faz ajudar a dormir. Se mesmo muitos adultos não agüentam esta pregação desencarnada e alienante das igrejas, ela atingiria adolescentes e jovens? Por isso, ninguém fique espantado se muitos adolescentes e jovens preferem ir a danceterias e a festas: é mais movimentado e menos sonolento. Para dormir, é melhor ficar em casa, porque é mais confortável. Os discursos sobre Jesus precisam ser mais concretos e aproveitar a rebeldia natural dos adolescentes que querem independência e resultados concretos. Jesus não pode ser descrito com um guru hindu que não sai do seu nirvana , não se exalta por nada nem se preocupa com coisas materiais. Nada mais fora do projeto jesuânico do que isso.
Paul Tillich faz toda uma argumentação teológica, muito pertinente para o nosso caso, sobre autonomia, heteronomia e teonomia. Chega a dizer que a igreja "está sujeita a uma tentação quase irresistível: a de se tornar heterônoma e de suprimir a crítica autônoma, provocando exatamente por estes métodos, reações autônomas. Estas em geral são tão fortes a ponto de provocar o secularismo não só da cultura, mas também da própria igreja".
O discurso do bom-moço é o discurso da heteronomia para um ser que está na fase em que precisa se afirmar autonomamente para crescer como gente. Não é à-toa que muitos adolescentes fogem deste discurso como o demônio foge da cruz, num dizer mais popular.
Ao trabalhar com uma lógica clássica do discurso, a ICAR não consegue perceber a dificuldade de um adolescente em entender e aceitar esse tipo de raciocínio linear e não-contraditório. A mente contemporânea do adolescente consegue aceitar bem a contradição no próprio pensamento e na vida, coisa que a lógica eclesial – excessivamente aristotélica – não consegue.
Lutero e o Vaticano II integraram a contradição do pecado na realidade humana e da igreja. Hegel introduziu, pela antítese, a contradição no pensamento filosófico. Está na hora de a Igreja aceitar uma lógica menos clássica e começar a integrar a contradição à sua própria realidade. O professor Newton da Costa , eminente catedrático brasileiro, formulou uma nova lógica que trabalha com o conceito de quase-verdade. Esta lógica paraconsistente está mais dentro da epistemologia adolescente do que a lógica clássica. Incluir a contradição como quase-verdade, ou verdade provisória, está mais de acordo com o processo de evolução pessoal e intelectual do adolescente.

f. A hermenêutica do trabalho com adolescentes
Em Puebla fez-se uma opção preferencial pelos pobres e pelos jovens . Longe de resolver o problema, isso talvez só nos fez reconhecer a dificuldade existente há tantas décadas e até hoje não resolvida. Basta ver a dificuldade que têm as paróquias em assumir a Pastoral da Juventude em seu seio. Não só da parte do clero existe resistência, mas também de muitos leigos. Não que não existam adolescentes e jovens em nossas igrejas e comunidades eclesiais, mas a maioria mais aceita está em grupos de jovens que não têm ligação com a pastoral da juventude: grupos de movimentos e de espiritualidade. Jovens “bem comportados” que se deixam conduzir por adultos que têm mais experiência e que são jovens há tantos anos . Creio que estas pessoas estão – no mínimo – atrasadas uns 30 anos na caminhada da História da Igreja.
Mas, voltemos ao assunto principal: a opção pelos jovens não foi bem assumida pela igreja, embora no discurso a idealização da realidade exista, mesmo como justificativa para a fuga que se seguiu. Gostaria neste texto de ver apenas algumas das razões que, me parecem, são fundantes para a realidade que se segue.
Como vimos antes, estamos com um problema grande nas mãos. Historicamente, a ICAR não consegue trabalhar bem com adolescentes. Na monografia de mestrado já provei que o que falta para a ICAR é ter proposta e ter método de trabalho com adolescentes. Método alguns até têm, mas proposta de trabalho é o que falta. É fácil dizer para os adolescentes no último dia de encontro da catequese de crisma: agora vocês serão soldados de Cristo e devem continuar a se reunir e a dar testemunho de sua fé!
Vejamos:
• o que significa ser soldado de Cristo? Alguém está em guerra? Temos arruaças na igreja? Contra quem lutaremos?
• continuar a se reunir quando? Onde? Porque? Com quem? Para que? Como que método?
• o que é dar testemunho da fé no mundo de hoje?
Qualquer das perguntas que se faça sobre este discurso só mostra que ele é um discurso vazio e sem consistência, por isso mesmo mistificador. Numa linguagem mais popular, tem o mesmo sentido de: “passa um dia em casa pra tomar um cafezinho”. Quem diz assim, não quer que o outro vá de verdade. Qualquer das perguntas acima daria muito trabalho para ser respondida. A pergunta sobre os soldados de Cristo, teria que ser respondida pela teologia bíblica e pela teologia da missão; a pergunta sobre as reuniões teria que ser respondida com a ajuda da teologia pastoral; a pergunta sobre o testemunho da fé no mundo contemporâneo tanto causa furor na teologia sistemática, como na pastoral, como na moral e na espiritualidade.
Pode-se perceber que uma frase desta, falada num contexto tão rápido, sem encaminhamentos e sem propostas só pode gerar uma mistificação que tem a única finalidade de proteger a instituição de críticas e responsabilidades. Quem não vier mais (quase todos!) não poderá acusar a ICAR de nada. Assim, inverte-se o discurso e quem não quer nada é o adolescente. A vítima passa a ser ré e passível de julgamento.
Mas a realidade nunca mostrou tão claramente que os adolescentes estão cada vez mais místicos e preocupados em assuntos religiosos. Assim como toda a sociedade deste século XXI, a religião nunca esteve tão em moda. Não tenho condições de dizer se hoje se fala tanto de Deus e das religiões porque a espiritualidade verdadeira está em falta ou porque isto consista em um interesse da mídia e da indústria cultural, como forma do capitalismo fagocitar qualquer oposição e aproveitar qualquer possibilidade de lucro. Mas basta assistir televisão, ler revistas ou ouvir rádio (para citar apenas alguns meios de comunicação) para se defrontar com assuntos religiosos, a favor ou contra.
A Teologia da Libertação (TdL) já deu bons frutos nestes anos de caminhada na América Latina e no mundo. De onde brotou a água limpa da TdL, também brotou a Teologia Feminista, a Teologia Negra, a Teologia Queer, etc. Agora está na hora de pensar uma teologia que integre a pessoa humana em processo de crescimento. Uma teologia feita para e por adolescentes. No meu texto BRINCANDO DE CABRA CEGA , eu aponto esta necessidade. A teologia tem se primado em teorizar sobre Jesus, como se ele já tivesse se encarnado pronto e acabado. É preciso uma teologia do processo encarnatório de Jesus. E isso parece exigir um estudo mais aprofundado em outras perspectivas. É preciso construir uma nova hermenêutica para tal. Este é um campo novo e ainda virgem.
Uma hermenêutica nova assim, vai se beneficiar de conceitos e trilhas já traçadas pelas teologias de contexto (feminista, negra, queer, etc). E também deve se beneficiar de novas descobertas nos evangelhos apócrifos. Sim, porque – apesar deles fantasiarem muito sobre a vida de Jesus (e também por causa disto!), nós podemos ver nestes textos um Jesus que errava para aprender. Coisa bem humana, digna mesmo de Deus.
A construção de uma nova hermenêutica que considere a teologia segundo as idades e as etapas da vida humana não será objeto da minha tese de doutorado. Mas fica aqui apontada a sua necessidade. A Universidade Católica vai fazer muito bem para a ICAR se conseguir especialistas e agentes de pastoral – sem esquecer os próprios adolescentes – para debater e começar uma discussão geradora de uma nova prática e de um novo discurso. O discurso nem é tão importante, porque ele será construído depois, com a advento de uma nova prática eclesial, onde os adolescentes sejam protagonistas de um novo processo de cidadania eclesial. Por fim, gostaria de lembrar a quem me escuta que as críticas dirigidas à ICAR são perfeitamente possíveis de serem feitas às Igrejas Luterana, Anglicana e às Igrejas Orientais. Apenas não me atrevo a dar maiores detalhes, visto que este não é o meu propósito nem minha especialidade.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

em primeira mao: artigo no prelo de um livro da UFSCAR

APOCALIPSE: DEUS QUE DÁ ESPERANÇA NA CRISE

Dr. Paulo Fernando Dalla-Déa
Ms. Nanci Moreira Branco


A literatura apocalíptica tem direito de cidadania na Bíblia desde a época do profeta Daniel, aproximadamente 200 a.C. Uma literatura que não é nova, mas é quase que desconhecida. Neste artigo, tentaremos dar algumas luzes sobre este texto bíblico partindo da Bíblia como texto e não de uma perspectiva de fé. Muitos são os cristãos que abordam o Apocalipse como possibilidade de amedrontamento, coisa para a qual ele não deveria se prestar. A sua finalidade é bem outra.
Todo texto traz em si o contexto em que foi escrito e deve ser entendido a partir da ótica de quem o lê. O diálogo que existe entre o autor e seu texto e este e o seu leitor é sempre fonte de novas descobertas e tem sempre novo sabor, pois o texto é lido a partir do contexto do leitor, que é mutável porque vivemos em um tempo e em meio a acontecimentos que não param e que modificam nosso ponto de vista interpretativo .
Contexto político e histórico da crise
A ambientação da escrita do livro do Apocalipse (= do grego: revelação) se dá durante a dominação da PAX ROMANA. O local, segundo Ap 1,9, é a ilha de Patmos, no Mar Egeu, próximo a Éfeso, na Grécia. Não estamos mais em ambiente judaico puro, mas no do judaísmo helenista . Foi neste contexto que fermentaram as comunidades judaico-cristãs primitivas. Pelo testemunho do próprio texto, o autor parece conhecer as comunidades da sua região . Estas comunidades passavam por uma crise dupla, que vamos ver a seguir.
CRISE EXTERNA. Dos anos de 90 até 135 d. C, temos o desencadeamento da perseguição do Império Romano, que estava em crise e tinha adotado como possível solução a exacerbação do panteísmo. O Império Romano nunca foi ateu, mas politeísta. Nesta época, Domiciano se proclama deus e se faz adorar por todos os povos dominados pelo jugo da PAX romana. Para manter a paz, retém os bens, através dos impostos; a liberdade de pensamento e culto religioso, através do culto forçado. E os judeus, recusando-se a isso, são chamados de ateus. Entre eles estão os cristãos, acusados e usados de bode expiatório pelo Império.
A experiência de impotência de muitos cristãos colocava em cheque o título de Kyrios (Senhor) dado a Jesus e agora reivindicado pelo Imperador romano. Muitos cristãos estavam com a sua fé abalada e duvidavam se Jesus Cristo era mesmo senhor do mundo diante do poderio dominador dos romanos. Os romanos já tinham demonstrado sua superioridade militar e política quando em 70 d.C. arrasaram a revolta judaica em Jerusalém e arredores. .
CRISE INTERNA. No final do século 1 e início do século 2 estamos na segunda geração de cristãos. Esta geração começa a dar sinais de falta de entusiasmo, já que a primeira acreditava que Jesus voltaria logo para julgar vivos e mortos e colocar o seu reinado poderoso numa nova ordem das coisas, da política e das pessoas. Paulo já enfrenta esse problema na comunidade de Tessalônica, quando argumenta que “quando estávamos entre vós, demos esta regra: ‘quem não quer trabalhar também não coma’. Ora, temos ouvido falar que, entre vós, há alguns vivendo desordenadamente, sem fazer nada, mas intrometendo-se em tudo.” (2 Ts 3,10) Muitos não queriam nem trabalhar, já que o Cristo viria logo . A segunda geração está em crise de fé: se o Cristo tarda a chegar, será que ele virá mesmo? Há ainda muitas divisões feitas por grupos e movimentos fanáticos nas comunidades. A primavera religiosa dos primeiros anos estava congelando.
Diante da dominação romana e das dúvidas internas, a crise se agrava e o ambiente de desesperança é o cotidiano de muitos cristãos. A crise está instalada a partir de dentro e a partir de fora. Qual a solução? Muitos cristãos não sabiam o que fazer. Outros se entregaram e se renderam à idolatria romana, ao poder absoluto. Renderam-se ao Império que se declarava o Kyrios do mundo.

O texto
Embora atribuído a João apóstolo, autor do Evangelho e das 3 cartas do Novo Testamento, o critério interno de estilo e de vocabulário comparado entre o grego do Evangelho e do Apocalipse leva a desconfiar de que este João seja o Apostolo João do Evangelho. Ademais, Dionísio, bispo de Alexandria que morreu em 264 d.C., desconfiava desta autoria; assim como o historiador Eusébio de Cesaréia (265- 339 d.C.). Contudo, a partir de 367 d.C., temos o livro do Apocalipse na lista oficial (cânon) da Bíblia. E cabe dizer que os cristãos sempre leram este texto como sendo de inspiração divina ,o que dá a ele uma respeitabilidade muito grande tanto hoje como na época em que foi escrito, corrigido e distribuído.
Colocamos aqui outro problema. O texto é visto com desconfiança e medo hoje porque ele tem uma linguagem totalmente visual e cifrada. Por que isso? Num tempo de perseguição, em qualquer lugar, os perseguidos usam linguagem de código para se comunicar. É recurso de sobrevivência para quem é visto pelo sistema como subversivo ou perigoso. Assim, a linguagem cifrada e imagética do texto era facilmente decifrada pelos cristãos de sua época e lugar, sendo por nós incompreensível porque estamos em contexto e lugar totalmente diverso. Agora, muitos tendem a pensar neste texto como sendo um livro de horrores e de previsões catastróficas sobre o fim do mundo, o fim dos tempos. É assim lido por muitos pregadores e usado para pôr medo nas pessoas a fim de que mudem de vida. Mas – sem dúvida – este não é seu contexto inicial e nem o seu contexto de recepção pelos primeiros cristãos.

A recepção do texto no seu contexto
Ao colocarmos o texto num contexto de perseguição, precisamos inverter o esquema de leitura. Se analisarmos o texto, notaremos que as pessoas que liam tinham uma esperança suscitada em suas vidas. Os acontecimentos descritos como visão não estavam para acontecer, mas muitos estavam acontecendo. A visão do autor do Apocalipse vai mostrando que o Cordeiro sairá vencedor no fim, mesmo que no meio do caminho a Besta tente ser a perfeição do seu reinado . Quem lê numa perseguição não tem tempo de ficar pensando cada detalhe, que pode ser incongruente. Quem lê um texto assim, o faz de forma rápida, ficando com a impressão geral. E a impressão geral quando lemos é que, apesar de tudo, a virada do Cristo como cordeiro vai chegar, mesmo que demore. A saída então é permanecer fiel, pois Cristo assumiu de novo a sua realeza.

E o sétimo Anjo tocou... Houve então fortes vozes no céu, clamando: A realeza do mundo passou agora para nosso Senhor e seu Cristo e ele reinará pelos séculos dos séculos. Os vinte e quatro anciãos que estão agora em seus tronos diante de Deus prostraram-se e adoravam a Deus dizendo: Nós te damos graças, Senhor, Deus todo-poderoso (...) porque assumistes teu grande poder e passaste a reinar. As nações tinham se enfurecido, mas a tua ira chegou, como também o tempo... de exterminar os que exterminam a terra (Ap 11,14)

A partir deste capítulo 11, temos um ponto de virada. Se até aqui o texto descrevia os males que estavam “por vir” e “desgraças iminentes”, a partir de então, marca uma virada radical. Mesmo que as forças do mal estejam ainda tentando reunir as últimas forças para combater, depois do toque da sétima trombeta, o mal já foi vencido. No capitulo 14, outro anjo sentencia: “Caiu, caiu Babilônia, a Grande , a que embebedou todas as nações com o vinho do furor de sua prostituição.”
Como uma pessoa que está sendo perseguida pode receber um anúncio deste? Sem dúvida, com esperança e alegria, mesmo que a perseguição ainda não tenha acabado. Vendo o final do filme em que se é parte integrante, mesmo o personagem mais sofredor se alegra com a possibilidade de seu resgate iminente. Este é o contexto original da recepção que as comunidades perseguidas e achacadas faziam de um texto assim. Em tempos de sofrimento persecutório, de desesperança e de quase exaustão de forças, perceber que o sofrimento terá um final a favor dos que agora são perseguidos apenas insufla de ânimo e coragem, plenifica de esperança.
Assim, mesmo tendo a dificuldade inicial da autoria contestada, o livro do Apocalipse foi bem recebido pelas comunidades cristãs porque possibilitou a sua sobrevivência. A mensagem de um autor desconhecido ou apenas conhecido como João (o que possibilitou certa confusão e apreensão no início) só permaneceu porque fez uma leitura esperançosa e verdadeira dos acontecimentos. A sua visão da história pela ótica de Deus se mostrou essencial para a sobrevivência e manutenção da fé cristã.
Aqueles que confiaram na realeza da Besta, do Dragão e foram os discípulos da grande Babilônia (Roma e seu Império) sucumbiram ao julgamento da história. O Império Romano caiu como todos os impérios humanos, por mais forte que tenha sido. E por mais discípulos que tenha feito.
O fato de ter a sua autoria colocada em dúvida pelos seus contemporâneos é fonte de qualidade do texto para nós. Não podemos localizar um autor preciso, o que nos remete a afirmar que este texto é fruto coletivo, seja na confecção, na revisão, na distribuição e na aceitação das comunidades eclesiais de seu tempo.

Outros contextos de perseguição
Para quem possa achar que estamos forçando uma linha de interpretação do texto, gostaríamos de comparar com outro texto de um autor perseguido durante a segunda Guerra Mundial.
Dietrich Bonhoeffer, pastor luterano e doutor em Teologia, foi preso por Hitler acusado de uma conspiração que tentou matar o supremo comandante do Estado Alemão. Homem de fé e extremamente inteligente, passa os dias na prisão lendo e estudando enquanto espera a sua libertação. Ela afinal não aconteceu e ele foi morto antes da vitória dos aliados, em 9 de abril de 1945. Gostaríamos de reproduzir um trecho de uma carta dele à família, esperando o dia da sua libertação:

Parece que agora no meu caso as coisas começaram a andar, e estou muito contente com isto. Tanto mais estranho é não poder conversar com vocês sobre o que está mexendo comigo, (...). Mas penso que agora não vai demorar muito. (...) Mas agora já estou antecipando a imensa alegria pelo dia em que não estarei mais lidando com pensamentos e figuras imaginárias, mas com pessoas reais com todas as diferentes tarefas cotidianas. Será uma grande readaptação.” (BONHOEFFER, p. 164)

Num contexto de crise, como foi a Segunda Guerra Mundial, durante o seu encarceramento, Bonhoeffer escreve estas palavras em 22 de outubro de 1943 porque tem esperança do fim do seu cativeiro. No caso de Bonhoeffer, a sua esperança não se concretizou: ele morreu pouco mais de um ano depois. Mas sem dúvida, a sua esperança o manteve firme e vivo, estudando e produzindo durante o período de prisão. É isso que a esperança faz: mantém o ânimo e dá força para continuar a resistência.
Esse efeito fortalecedor e animador da esperança também foi o que sentiram os cristãos que acreditaram no livro da revelação (Apocalipse). Para quem acreditou nas suas palavras e visões, a realidade ficou menos dura e menos desesperadora. Num contexto de perseguição, como foi a do Império Romano, Estado Totalitário e com pretensões divinas, saber que Deus está dizendo a sua Palavra para aquele povo, dando sua luz e mostrando o caminho do Cristo ressuscitado e vencedor, acende uma fagulha de fé e de vivacidade que faz a diferença. Mesmo que a perseguição seja forte e grande e que as cartas do jogo sejam marcadas, saber que há uma palavra (e Palavra de Deus) que diz o oposto induz a pessoa a lutar e a resistir.
Por isso, temos tantas dificuldades de entender o contexto de esperança e ânimo renovado que os perseguidos sentem ao ler a linguagem cifrada e as visões do livro do Apocalipse. Um pouco como M. BAKHTIN critica estudiosos de Rabelais: não entenderam o essencial porque não entenderam o contexto em que a obra foi produzida.

Os especialistas têm o hábito de compreender e julgar o vocabulário da praça pública em Rabelais em função do sentido que ele adquiriu na época moderna, isoladamente dos atos carnavalescos e da praça popular que constituem seu veículo. Por isto, não podem captar esta profunda ambivalência. (BAKHTIN, p. 129)

Para compreender o sentido e a inovação de Rabelais, Bakhtin estudou o contexto da praça pública e o do riso da Idade Média a fim de perceber o significado da obra rabelaisiana a partir de sua época. Ao fazer um anacronismo no estudo, vendo o texto antigo pela realidade moderna, os estudiosos e comentadores vêem o texto invertido e sem sentido. Diante do contexto medieval, consegue perceber a genialidade dos textos rabelaisianos: trazer o riso e os gêneros do discurso da praça e do povo mais simples. Coisa que pouca gente se aventurou a fazer, por falta de vivência ou por não dar a devida importância para esta cultura popular, tão colorida e rica. Só o gênio de Rabelais conseguiu captar, perceber e registrar esta vida e esta cultura. Foi sua contribuição específica para a literatura universal. O que passou despercebido aos outros se tornou o gênio de Rabelais.
Estamos numa questão semelhante ao ler o Apocalipse: se não percebermos o contexto de perseguição e dificuldade dos cristãos da época, nunca poderemos captar a esperança renovada e o fluxo de sangue novo para quem está sendo perseguido e lê este livro. Quem vê medo, trevas e se sente inseguro com o livro do Apocalipse é porque está confortável em sua posição de vida. Mas quem se sente perseguido e desanimado, por estar com a sua vida em sintonia com o contexto de perseguição e morte, ao fazer a leitura do Apocalipse, sente-se renovado e amparado por um Deus que morreu na Cruz, mas que continua sendo o Kyrios de todo o universo.

Os impérios de ontem e de hoje
Mesmo a leitura mais fundamentalista do Apocalipse não é ingênua. O discurso escatológico de muitas correntes fundamentalistas se funda num contexto de “perseguição” ou mesmo de resistência ao modelo de mundo totalitário do atual Império Capitalista Hipermoderno. O capitalismo, para muitos, é uma instituição tão ou mais totalitária do que o foi o Império Romano.

O turbilhão da globalização está motivando reações defensivas em todo o mundo, (...). (...) A associação no inconsciente coletivo entre crime, violência, terrorismo e minorias étnicas/estrangeiros/o próximo leva a um impressionante aumento da xenofobia européia, bem no auge do universalismo europeu. Há sem dúvida uma continuidade histórica à unificação anterior da Europa medieval em torno do Cristianismo – ou seja, uma fronteira religiosa intolerante, exclusiva de infiéis, pagãos e hereges. (CASTELLS, p. 401-402)

Num contexto assim, a perseguição pode existir, mesmo que seja difusa. A linguagem apocalíptica é muito usada pelos grupos fundamentalistas cristãos, que se sentem perseguidos pela besta capitalista.
Interessante também lembrar que a linguagem do gênero musical rock, especialmente as tendências mais “underground, tende a ter uma linguagem mais próxima da apocalíptica cristã, visto que contesta o status quo. As imagens do rock com relação ao apocalipse e a sua profusão de letras usam o tema do fim do mundo, da morte e dos cavaleiros do Apocalipse: guerra, fome, doenças e morte. Só poderemos entender a fascinação dessa imagética ao perceber o contexto de perseguição da sociedade ao rock contestador e subversivo. Ao serem integradas à sociedade, essas imagens tendem a ser percebidas apenas como simpatia à morte e ao demônio, o que antes tinha significado preciso de contestação “underground” do cristianismo e da sociedade capitalista que ele obliquamente gerou.
Cremos que essas reflexões a respeito do livro do Apocalipse podem nos dar a perceber o ambiente em que ele foi gerado, qual a sua força a partir de um contexto de perseguição para um grupo/pessoa que o leia. E esperamos que este artigo seja gerador de uma leitura menos invertida e mais realista do Apocalipse. Se este artigo servir de start para leituras mais aprofundadas, poderemos dizer que ele cumpriu seu papel.

BIBLIOGRAFIA

BONHOEFFER, Dietrich - Resistência e submissão: cartas e anotações escritas da prisão – trad. Nélio Schneider. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2003.
BAKHTIN, M. – Cultura popular na idade média e renascimento – trad. Yara F. Vieira. São Paulo: HUCITEC/UNIVERSIDADE DE BRASILIA, 1987.
CASTELLS, M. – Fim de milênio - trad. Klaus B. Gerhardt e Roneide V. Majer, 2ª. ed. SP: Paz e Terra, 2000. (A era da informação: economia, sociedade e cultura, vol. 3)

sábado, 21 de novembro de 2009

Artigo sobre violência e juventude

AMIGOS, SEGUE ARTIGO ESCRITO E APRESENTADO EM 2006, EM SANTA CRUZ DO SUL - RS:

Uma interpretação teológica da violência contra a juventude nos tempos atuais

Dr. Pe. Paulo F. Dalla-Déa, faap.
Teólogo Prático-Pastoral
Membro da SOTER


INTRODUÇÃO GERAL AO TEMA

Esta mesa de debates focaliza juventude e violência. Não sou habilitado para falar da violência juvenil. Sociólogos e outros profissionais são mais qualificados para isto. Contudo, não posso me recusar a deixar de dar a minha contribuição. Sou teólogo e como teólogo quero trabalhar. A ciência teológica atual acha possível e desejável trabalhar em equipe com outras abordagens cientificas e humanas, já que todo discurso sobre Deus é um discurso (inspirado ou não por Deus) em linguagem humana sobre Deus. Para Deus se fazer entender pelo humano ele precisa falar no nível de compreensão dos humanos ou eleva-los á sua realidade de vida. Como não estamos na realidade divina (a vida eterna) e sim no tempo e no espaço especifico da humanidade, precisamos ser humildes e reconhecer que a linguagem teológica também tem limitações de tempo e espaço. Assim, a ciência humana, também sujeita às mesmas regras, pode nos ajudar.
Hoje se fala muito sobre juventude e sobre adolescência, como sendo uma espécie de cultura específica. Ou uma sub-cultura da sociedade capitalista. A cultura juvenil como conhecemos no Ocidente cristão - não parece existir na sociedade muçulmana e na sociedade hindu. Cultura juvenil é produto do capitalismo, cada vez mais disseminado pelo planeta. Mas não se pode esquecer que a juventude é uma etapa da humanidade. É preciso inserir o conceito juventude na sociedade geral. Uma sociedade cheia de contradições, de competitividade e de rachaduras de toda espécie. Uma sociedade que não gera a vida, mas a morte de milhões de seres humanos para manter a vida de outros milhares deles. A pobreza e a morte de pessoas na África, na Ásia e em outros lugares do planeta ajuda a manter a vida sustentável da Europa e da América do Norte. O planeta não agüentaria se todos os povos tivessem o nível de vida dos americanos ou mesmo dos europeus. Precisaríamos de mais planetas Terra no sistema solar para que isto fosse possível.
Visto deste ponto-de-vista macro, a juventude é um corte de parte da humanidade capitalista atual. Ou seja: não se podem ver os jovens sem se considerar as contradições capitalistas e os desejos dos adultos na sociedade eles são muitos: o consumo gera desejos e comportamentos contraditórios. Ao mesmo tempo em que se quer e deseja a paz, se quer manter a desigualdade, esquecendo que a falta de oportunidades e de emprego para todos reprime o desejo de consumo e de bem estar, gerando uma repressão que se pode explodir em roubos e mais violência. Uma sociedade de iguais é uma sociedade menos violenta por definição e por experiência, veja-se a Europa. Lá, há mais de cem anos foram feitas as reformas agrária, educacional e salarial que ainda se precisa fazer no Brasil. E é uma sociedade muito menos violenta. Os protestos da juventude em Paris só reforçam esta tese: quando as oportunidades são negadas (como pelos atuais neoliberais governos da França), a violência explode também lá.
Mas há outras contradições: cada vez mais o trabalho no campo é mecanizado e as pessoas vivem nas cidades. Ora, até num zoológico, onde o espaço fica superpovoado, os animais (e o bicho Homem) ficam mais sujeitos a uma convivência estressante e violenta. Mesmo em sociedades mais calmas. Onde há muitos homens vivendo em um espaço apertado, haverá mais violência. Em espaços rurais ou ajardinados, a violência tende a ser muito menor, embora ela não seja eliminada. Para não existir violência seria preciso algumas intervenções radicais no humano, suprimir a adrenalina dos corpos, lobotomizar as pessoas ou isola-las da convivência social. Como estas soluções representam mutilações na existência humana, não são desejáveis nem possíveis. Assim, como a população mundial das cidades anda crescendo, nós – humanos – vamos ter que nos adaptar com um nível mais elevado de violência diária. Violência que não pode ser incentivada, mas terá que ser minimamente suportada.
Mas há também problemas específicos da realidade juvenil. Os adolescentes tendem a ter um nível de onipotência juvenil muito grande. A onipotência juvenil se caracteriza pelo fato do adolescente achar que ele pode tudo. Que com ele as coisas ruins não vao acontecer porque ele é “mais esperto” que os adultos que conhece. Que eles estão ultrapassados, não sabem de nada e por isto se dão mal. Adolescentes de classe média e alta, que nunca trabalharam não tem noção dos perigos de suas atitudes, das conseqüências que elas trazem, já que os pais destas classes tendem a superproteger os filhos e filhas. O fato de ainda não precisarem trabalhar para se sustentar já configura uma superproteção, que é estendida na medida em que os pais podem suportar os filhos em casa indefinidamente. Há casos de filhos adolescentes com 35 anos ou mais. A adolescência termina com a mudança de casa e conseqüente autosustento. Antes disto, mesmo com 55 anos, a pessoa ainda continua adolescente.
Este sentimento de onipotência é mais forte quando os pais protegem mais os filhos, funcionando como escudo protetor de problemas e solucionando os problemas dos filhos sem o esforço deles. Por isto, se tem muito mais problemas de acidentes com adolescentes e jovens bêbados de classe média e alta do que com adolescentes e jovens de classes baixa e pobre. A solução deste problema se situa em níveis diferentes: o trabalho, a escola e a religião. São eles que ajudam a colocar os limites nas pessoas e a impulsionar a vivência social num nível civilizado.
O problema é que a escola não pode mais se apoiar no trabalho já que o adolescente e o jovem sabem que não há trabalho para todos. Numa sociedade com alto índice de desemprego como é o Brasil, o trabalho formal é quase um privilégio de poucos. E a escola também não pode apoiar-se na religião, visto que a religião está tão fragmentada em tantos cultos, cristãos ou não, que não pode mais dar o freio moral que impede que o homem seja lobo de outro homem. A sociedade capitalista elimina a hipótese Deus e só a considera seriamente quando esta hipótese gera lucro. Assim, Deus não interessa, mas os cultos religiosos sim, porque geram trabalho e consumo para muitas pessoas. O conteúdo da religião e seu efeito social é praticamente descartado, enquanto se valoriza cultos da prosperidade sob a alcunha de cultos religiosos. Os cultos da prosperidade não são cultos a Deus, mas ao dinheiro. Se vou rezar na congregação para que eu resolva os meus problemas financeiros e arrume emprego que dê status e dinheiro, não estou preocupado com Deus, com Jesus ou com outra entidade, ou sequer com o meu próximo, mas comigo mesmo, numa visão individualista e não solidária. Um culto assim não ajuda as pessoas a ser mais humanas, mas as embrutece mais ainda, colaborando para a manutenção do status quo.
A religião cristã ficou famosa na história da humanidade por introduzir o cuidado com os pobres, com os doentes e com os desvalidos, impondo limites morais e tornando a convivência social menos animal. Mas uma religião individualista – embora faça um sucesso enorme na mídia – não consegue se contrapor ao comportamento capitalista que gera as contradições e os problemas sociais que vemos. Muito pelo contrário, abençoa e justifica a exploração do homem pelo homem, jogando isto para o fatalismo do discurso da vontade de Deus. Deus não merece esta culpa. Pelo menos, o Deus revelado na Bíblia: Javé, o libertador\resgatador dos pobres e dos desvalidos.
O cristianismo tradicionalmente tem funcionado como freio moral para as pessoas. Esta é a crítica da Ciência desde o Renascimento. Uma crítica fundamentada para a religião cristã da época. Desde a virada epistemológica feita pelo Concilio Vaticano 2º, a religião cristã tem sido também motor de revoluções e lutas, superando a fase mais repressora. A Revolução Cubana (década de 50), a Revolução Sandinista (década de 80) e inúmeras lutas contra regimes militares (incluindo o Golpe de 1964, no Brasil), foram motivadas por uma visão religiosa libertadora da vida e da Bíblia. Infelizmente, esta visão tradicional é ainda a mais dominante, mas não é mais a única.
Há uma possibilidade de se trabalhar com os jovens e os adolescentes com uma visão religiosa menos conservadora e mais revolucionária, mais conforme com a autonomia que o mundo atual exige das pessoas, desde Kant. Se Jesus, o Cristo, fosse tão obediente como querem alguns discursos religiosos conservadores, ele não teria morrido na cruz, mas de idade. A cruz era o castigo infringido aos revolucionários do Império Romano. Ao longo de séculos, o cristianismo foi cooptado pelo Estado (a partir da virada constantiniana, em 313 d. C.). Desde o século 19, a Igreja e o Estado vem se libertando mutuamente, seja por iniciativas da sociedade, seja por iniciativa da Igreja. A partir de 1965, a Igreja tomou a si muito deste fardo e anda (ainda de forma lenta) se separando do Estado.
Feita esta longa e necessária introdução, contextualizando a realidade social que vivemos no capitalismo dependente e selvagem do Brasil, passemos a algumas considerações sobre temas mais específicos da Teologia.

1. O SACRIFICIO DA JUVENTUDE: Deus quer a morte dos jovens?

Sou teólogo prático-pastoral, não sou biblista nem teólogo sistemático. Portanto, não vou fazer o que não é de minha competência. Não vou fazer uma análise minuciosa do texto bíblico ou uma exegese dele. Apenas quero fazer alguns comentários que sirvam para a nossa análise e a nossa pastoral eclesial. Nem por isto menos importante ou relevante . A partir da leitura bíblica que se faz, se obtém uma forma de pensar e refletir a vida e a teologia. O primeiro e paradigmático texto é do susto que levou Isaac com seu pai Abraão.


“Depois destes acontecimentos, Deus submeteu Abraão a uma prova. Chamando-o, disse: “Abraão”, e ele respondeu: “Aqui estou”. 2 E Deus disse: “Toma teu único filho Isaac a quem tanto amas, dirige-te à terra de Moriá e oferece-o ali em holocausto sobre um monte que te indicar”. 3 Abraão levantou-se bem cedo, selou o jumento, tomou consigo dois criados e o filho Isaac. Rachou lenha para o holocausto e se pôs a caminho para o lugar do qual Deus lhe havia falado. 4 Ao terceiro dia Abraão levantou os olhos e viu de longe o lugar. 5 Disse então aos criados: “Ficai aqui com o jumento enquanto eu e o menino vamos até lá. Depois de adorarmos a Deus, voltaremos a vós”. 6 Abraão tomou a lenha para o holocausto e pôs às costas do filho Isaac, enquanto levava o fogo e a faca. E os dois continuaram caminhando juntos. 7 Isaac disse ao pai Abraão: “Pai!”–“O que queres, meu filho?”respondeu. E o menino disse: “Temos o fogo e a lenha, mas onde está o cordeiro para o holocausto?” 8 E Abraão respondeu: “Deus providenciará o cordeiro para o holocausto, meu filho”. E os dois continuaram caminhando juntos. 9 Chegados ao lugar indicado por Deus, Abraão ergueu ali o altar, colocou a lenha em cima, amarrou o filho e o pôs sobre a lenha do altar. 10 Depois estendeu a mão empunhando a faca para imolar o filho. 11 Mas o anjo do Senhor gritou-lhe dos céus, dizendo: “Abraão! Abraão!” Ele respondeu: “Aqui estou!”12 E o anjo disse: “Não estendas a mão contra o menino e não lhe faças mal algum. Agora sei que temes a Deus, pois não me recusaste teu único filho”. 13 Abraão ergueu os olhos e viu atrás de si um carneiro preso pelos chifres num espinheiro. Pegou o carneiro e ofereceu-o em holocausto em lugar do filho. 14 Abraão passou a chamar aquele lugar: “O Senhor providenciará”. Hoje se diz: “No monte em que o Senhor aparece”. 15 O anjo do Senhor chamou Abraão pela segunda vez lá dos céus 16 e lhe falou: “Juro por mim mesmo – oráculo do Senhor – uma vez que agiste deste modo e não recusaste teu único filho, 17 eu te abençoarei e tornarei tão numerosa tua descendência como as estrelas do céu e como as areias da praia do mar. Teus descendentes conquistarão as cidades dos inimigos. 18 Por tua descendência serão abençoadas todas as nações da terra, porque tu me obedeceste”.
Gn. 22
A estória do sacrifício de Abraão é sobre um grande engano. Abraão creu que Javé se agradaria do sacrifício de seu filho Isaac, visto que todos os deuses que ele conhecia gostavam disto. Os deuses têm o estranho costume de gostar da morte dos homens e saborear o seu sangue. Na antiga Mesopotâmia de Abraão, os deuses se agradavam com sacrifícios de crianças e de jovens. No antigo Egito, os deuses se agradavam com os funerais dos Faraós, em que eram enterrados dezenas de empregados juntos com eles. Na civilização Inca, o deus Sol também “pedia” o coração de suas vitimas. Atualmente, o capitalismo financeiro faz este papel de exigir a morte de muitos para a manutenção dos privilégios de poucos, a morte na África subsaariana é a face negra da vida de europeus e norte-americanos. Os ídolos têm esta pretensão: receber a vida dos humanos. O relato bíblico diz que Deus chamou Abraão e lhe pediu esta prova de fé e de amor, como os outros deuses. Abraão, acostumado que estava a ver sacrifícios humanos aos deuses não estranhou o “pedido” feito. Era normal a morte de jovens e crianças.
O carinho de Abraão por Isaac se mostra que ele não deixa que seu filho leve o fogo e a faca, ambos instrumentos que poderiam causar algum dano. Mas o relato é surpreendente: Javé se mostra muito melhor do que se esperava: não só impede o sacrifício na última hora, como também substitui a vitima por uma vitima animal e ainda mostra que o sacrifício humano não é agradável aos olhos do Senhor. Nunca.
Javé, o Deus revelado na Bíblia, não quer a morte das pessoas. Pelo contrário, quer que elas vivam e possam transmitir a vida, pois ela é dom. Pelo contrário, os cultos dos deuses requerem a morte de muitas pessoas, a seu serviço. O critério bíblico para se saber se o Deus que está à nossa frente é Javé, o Deus libertador\resgatador da Bíblia, é este: se ele exige ou não a morte das pessoas.
O mundo adulto frequentemente se engana sobre a divindade e sobre os jovens. E, em vez de eles serem protegidos porque são o futuro da existência humana sobre a Terra e a fonte de renovação das culturas dos povos, são frequentemente imolados em sacrifício, num engano de solução de problemas. Por que Abraão achou que Javé poderia querer a vida de seu filho herdeiro? O capitulo anterior informa que:

Por isso o lugar foi chamado Bersabéia,32 porque ali os dois fizeram juramento. Tendo feito aliança em Bersabéia, Abimelec e Ficol, chefe do exército, partiram de volta ao país dos filisteus. 33 Abraão plantou em Bersabéia um tamarindeiro e ali invocou o nome do Senhor , o Deus Eterno. 34 Abraão residiu muito tempo na terra dos filisteus
Gn 21

Será que, por ter residido muito tempo entre os filisteus, Abraão se esqueceu do essencial do seu culto a Javé e da sua função como pai? Abraão é um adulto colocando o seu filho para ser sacrificado. A Bíblia não nos informa em que apuros Abraão se meteu para ter que fazer um sacrifício tão grande, mas pode-se ver que é mais fácil para o adulto, mesmo tendo um carinho grande pelos jovens, colocá-los como parte do problema e com a responsabilidade de toda a solução, seja ela qual for.
É mais fácil para a sociedade adultocentrada colocar ao jovem o peso de ser sacrificado para resolver os seus problemas. O jovem torna-se vitima oferecida no altar dos sacrifícios normais. Quem tem que resolver o problema da previdência e das aposentadorias? Não serão as futuras gerações que agora ingressam no mercado de trabalho? Quem tem que ser sacrificado no problema do emprego? Não é a juventude que sofre o desemprego por não ter experiência? Quem tem que ir à guerra combater nas linhas de frente? Não são os jovens soldados comandados por oficiais adultos? Quem tem que resolver o problema ecológico da poluição (séc. 19 e 20) e da superpopulação de pobres do planeta (século 20 e 21)? Quem são as maiores vitimas da violência do trânsito das metrópoles? Quem são as vítimas do tráfico e dos vícios da sociedade drogada e anestesiada em falsas felicidades? Quem são as maiores vítimas da AIDS e das doenças sexualmente transmitidas?
Ora, estes problemas não foram causados por eles, mas serão deixados pelos adultos para que eles resolvam, agora ou mais para frente. Quando eles forem adultos, quem sabe, tenham a sorte de empurrar para futuras gerações também. O jovem questiona como Isaac fez, mas tem sempre uma resposta com a de Abraão, vaga e imprecisa. Ideológica. Resposta que esconde a verdade nua e crua dos fatos.
No relato de Gênesis, o anjo de Deus (face visível de Javé) intervém na última hora porque – senão – Abraão iria acabar concluindo o ritual. Não será tarefa da teologia de hoje mostrar à sociedade adultocentrada que é preciso segurar a sua mão, antes que os jovens morram em sacrifício pelos problemas dos adultos? Será que sempre os jovens terão que levam o peso da solução dos problemas como Isaac levava a lenha, enquanto Abraão – carinhosamente – levava o fogo e o punhal? Os instrumentos do sacrifício estavam na mão do adulto, enquanto o jovem levava o peso maior e se preparava – sem entender direito – para ser amarrado e oferecido como sacrifício para o culto. Que, neste caso, não seria um culto a Javé, mas a um ídolo. Apenas os falsos deuses exigem o sacrifício de outros para si. Javé – pelo contrário, proíbe este tipo de culto e se desgosta dele. O relato da encarnação de Jesus, o Cristo, é o relato da divindade que se torna humana para se auto-imolar. Deus não manda que outros façam sacrifícios, ele mesmo o faz em lugar do homem. O messias esperado é uma autorevelação de Deus, de um Deus tão surpreendente que se torna homem e se imola pelo homem. É uma historia bem diferente. Uma história de amor e sacrifício. Bem diferente do que vemos entre humanos, onde os sacrifícios costumam ser empurrados para as futuras gerações.
No relato bíblico, a bênção que Abraão recebe passa pela vida do seu filho Isaac, porque atinge a sua descendência. Ironicamente, o texto bíblico termina com a vida do jovem se tornando bênção para o adulto.

2. A MANIPULACAO DA JUVENTUDE PELOS ADULTOS GERA A MORTE

A manipulação é algo sistematicamente usado na sociedade capitalista do espetáculo global. Manipula-se pela falta de informação e pelo excesso dela. Vindo de interesses tão diferentes como díspares, a informação excessiva faz com que a população se sature dela, deixe-a de lado por não saber mais qual fonte é confiável. Se as fontes são todas confiáveis, porque as informações são contraditórias? Porque pesquisadores de nível internacional se contradizem em números de pesquisas? Não será porque são empregados de multinacionais diferentes, com interesses em conflito? Gostaria de me reportar para um texto bem interessante da Bíblia. É o relato de Davi e de Golias. Porque Davi venceu Golias? Foi APENAS porque Deus estava a seu favor? Mas isto não foi atribuído a um milagre e sim a um atuar conjunto entre Javé e Davi. O texto vai todo o capitulo 17 de 1º Samuel. Vou resumir um pouco o texto:

v. 1-3: Introdução do relato
4-11: a descrição de Golias e o medo dos israelitas
12-37: Davi chega ao acampamento e é desprezado por ser jovem pelo irmão mais velho (adulto)
38-39: Numa tentativa de proteção do adulto ao jovem, o rei Saul dá a sua armadura para Davi, que não consegue andar com ela e a tira.
40-42: Davi pega as suas armas e enfrenta Golias e é desprezado por ser novo e bonito.
43-47: inicio da luta: insultos mútuos.
48-51: Davi acerta a pedrada e corta a cabeça de Golias (invenção de novo maneira de lutar que não é percebida pelos militares adultos)
52-54: fuga dos filisteus e entusiasmo dos israelitas
55-58: o rei Saul (adulto) quer conhecer a família de Davi

O que isto nos fala? Que Davi foi sempre desprezado por ser novo e bonito. “Galã de novela só serve para aparecer e fazer figura...” é o que pensavam de Davi. E ele mostrou que não era nenhum “loiro e burro”, mas alguém que tinha cabeça no lugar e uma fé em Javé que lhe era motor de ações concretas e não idealizadas. Enquanto os adultos, acostumados ao combate da guerra e (por isto mesmo) vendo a realidade a partir de uma única ótica, não conseguiam resolver o problema do desafio de Golias, homem extremamente forte e aparelhado para a luta, Davi inventou um novo tipo de abordagem, a partir do conhecimento que ele tinha. A partir da sua experiência em lutar para defender o rebanho, ele nocauteia Golias, para depois vencê-lo. Na luta corpo-a-corpo, ninguém teria chance contra Golias. Por isto mesmo, Davi não usou esta técnica de luta, mas percebeu uma nova forma de abordagem, a partir da autoconfiança do seu adversário. Nenhum adulto pode perceber isto, porque estavam vendo o problema pela mesma ótica.
Por ser jovem e inexperiente nas artes da guerra e por incorporar um tipo de conhecimento desprezado pelos adultos, Davi conseguiu vencer o combate. Será que Davi era o único pastor daquele campo de batalha? Com certeza não. Muitos eram pastores recrutados para aquela guerra. A grande esperteza de Davi se mostra em dois campos distintos: em não usar as armas dos adultos (a armadura de Saul), que só poderia atrapalhar, e em não usar a técnica conhecida de combate, mas em inventar uma nova modalidade. Aí podemos ver onde é que Javé estava combatendo com Davi: inspirando-o a ser criativo em suas soluções, enquanto todos estavam preocupados em usar os conhecimentos tradicionais, confiando em suas próprias forças e técnicas.
Hoje também, os melhores jovens têm desprezado o conhecimento e a manipulação da mídia e feito as suas próprias escolhas, que ainda são desprezadas pelos adultos, com discursos preconceituosos. Este é mais um tipo de violência acometida contra os jovens de hoje. Os jovens não têm a experiência dos adultos. Por isto mesmo, eles trabalham e criam coisas novas, partem para novas soluções dos mesmos problemas. E é assim que fazem a sociedade avançar. O discurso de “no meu tempo as coisas eram diferentes, os jovens respeitavam mais os mais velhos...” é profundamente ideológico, conservador e violento. Violência simbólica, mas nem por isto menos paralisante. O desprezo pela inexperiência e pela beleza de Davi ainda se reproduz nas pessoas e nas falas de hoje, aqui e agora, por muitos.
Outro texto que gostaria de comentar sobre manipulação é o texto do banquete de morte em que foi decidida a morte de João, o batista.

21 Chegou um dia oportuno, quando, por ocasião de seu aniversário, Herodes ofereceu um banquete aos grandes de sua corte, aos comandantes e pessoas ilustres da Galiléia. 22 A filha de Herodíades entrou e se pôs a dançar, agradando ao rei e aos convidados. Herodes disse à moça: “Pede-me o que quiseres e eu te darei”. 23 E lhe jurou: “Tudo que me pedires eu te darei, ainda que seja a metade de meu reino”. 24 Ela saiu e foi perguntar à mãe: “O que é que eu peço?” Esta lhe respondeu: “A cabeça de João Batista”. 25 Ela voltou apressadamente à presença do rei e fez o pedido: “Quero que me dês agora mesmo, numa bandeja, a cabeça de João Batista”. 26 O rei ficou triste, mas não quis deixar de atendê-la por causa do juramento e dos convidados. 27 Sem tardar, mandou um carrasco com a ordem de trazer a cabeça de João. Ele foi e degolou João na cadeia. 28 Depois trouxe a cabeça numa bandeja e a deu à moça, que a entregou à mãe. 29 Sabedores do fato, os discípulos de João vieram pegar o corpo e o sepultaram.”
Mc 6, 21-29

Este texto é exemplar em muitas coisas. Nele vemos como os adultos manipulam e roubam os jovens. A mãe da dançarina (adulta) manipula e rouba o presente que a filha (adolescente\jovem) deveria ter como paga pela dança de entretenimento após o jantar dos ricos governantes. Ela dançou, mas quem recebeu a paga foi a sua mãe, que nada fez. A jovem dançarina faz o que todo adolescente faz ao adulto que confia: pergunta o que é o melhor a fazer. O adulto (mãe) não pensa na jovem que pergunta, mas manipula a resposta em favor de si e de seus problemas, explorando a inexperiência e a confiança da jovem. O que deveria ser o pagamento pela dança sem compromisso se transforma então em solução de um problema de um adulto, vingando-se de outro adulto incômodo.
O governante adulto não conseguia resolver o problema público, que estava num impasse político-religioso. A solução pública se tornava um fardo. O fardo foi removido pela manipulação de um adulto, colocando a responsabilidade da morte na pessoa da jovem dançarina. A ela coube pedir a cabeça de João, o batista, resolvendo o impasse e ficando com a responsabilidade pública do fato. O casal adulto de governantes se safa do peso de dar a sentença, que agora não precisou nem de julgamento, nem de tribunal, nem de testemunhas e nem gerou rebelião de protesto. O conchavo político foi usado a favor da dominação e da exploração do povo, ficando João, o defensor dos pobres e de sua opinião, morto e a jovem dançarina responsabilizada. O jantar festivo dos grandes dominadores acaba em morte dos pobres. A festa dos ricos termina com a morte dos pobres e a manipulação dos jovens.
Gostaria de pensar que este é um fato isolado, mas tenho visto muitos jovens que – não tendo a esperteza de Davi e nem a sua própria opinião diante dos fatos – ao perguntar aos adultos qual a chave dos problemas, acabam manipulados e roubados. Ajudam o mundo adulto a ficar mais rico e a colocar a culpa simbólica dos problemas nas gerações mais jovens. A ingenuidade da dançarina se mostrou na confiança sem limites no mundo dos adultos. Ela deveria ter desconfiado, nem que fosse um pouco só, de que ela corria o risco do mundo adulto pensar mais em si do que nos jovens.


3. PLANO DE JESUS PARA OS JOVENS

Uma vez que já vimos algumas formas de manipulação e de violência da sociedade adulta contra o mundo dos jovens, passemos a ver algo mais positivo. A relação de Jesus (um jovem pregador com visões bem diferentes da leitura da Torá feita naquele tempo) com os jovens de seu tempo e de sua cultura. O primeiro texto será o da ressurreição do filho da viúva de Naim.

11 Tempos depois Jesus foi para uma cidade chamada Naim, acompanhado dos discípulos e de uma grande multidão. 12 Ao aproximar-se da porta da cidade, saía o enterro de um jovem, filho único de uma viúva. Uma multidão numerosa da cidade o seguia. 13 Ao vê-la, o Senhor ficou com muita pena e lhe disse: “Não chores”. 14 E, aproximando-se, tocou o caixão; os que o carregavam, pararam; e Jesus disse: “Moço, eu te ordeno, levanta-te”. 15 O morto sentou-se e começou a falar, e Jesus o entregou à mãe. 16 O medo se apoderou de todos, e louvavam a Deus, dizendo: “Um grande profeta surgiu entre nós”; e: “Deus visitou seu povo”. 17 A notícia do fato correu por toda a Judéia e por toda a redondeza.
Lc 7

O texto bíblico só nos dá as informações essenciais. Não nos informa do que morreu o jovem. Acidente de trabalho? Doença? Assassinato por revanche ou romance? O que é certo é que não sabemos nada sobre isto. E temos outra certeza: contrariando a sua práxis normal, é Jesus que se adianta e se oferece para consolar e para curar\ressuscitar. Jesus achou aquela situação insustentável: um jovem não deveria estar morto, ainda mais quando a sua mãe não tem mais com quem contar. As viúvas em Israel dependiam do trabalho de seus filhos ou da caridade da comunidade, em geral também muito pobre. Havia poucos ricos em Israel naquele tempo. E, embora a esmola e a caridade com os órfãos e as viúvas fossem mandamentos bíblicos, isto poderia não ser suficiente para o sustento de tantas viúvas e pobres naquela época. (Cfr. 1Rs 17,7-24; 2Rs 4,8-27)
O certo é que Jesus não se conforma àquela situação e vai lá para dar um jeito nisto. Primeiro, Jesus fala com a mãe, a mais interessada e a mais sofrida. Falar com mulheres em público era já – de si – um fato escandaloso. Depois Jesus, sem cerimônias, toca o caixão (tocar o caixão só era permitido aos locos ou aos profetas) e ainda dá uma ordem estranha: ordena ao jovem que se ponha em pé. Ele não estaria realmente morto? Ou ele teria morrido por falta de perspectivas e sonhos? Sim, porque isto também mata. Causa uma depressão incurável que vai minando aos poucos a energia vital de uma pessoa, até o ponto em que ela se acaba ou que põe fim à sua própria vida. Seria ele um suicida? Não sabemos, mas no ambiente bíblico, o suicídio é raro.
Jesus veio para dar a vida, em todas as suas formas (Jo. 10,10). Jesus não aconselha ou pede, mas ordena: o lugar do jovem é de pé diante da própria vida. O jovem primeiro se senta (sai de sua posição submissa), depois fala (dá sua opinião) para um grupo que certamente o escuta surpreso (jovens não tinham direito de opinião reconhecida até os 30 anos), depois retorna ao seio da família (retomando a sua função de proteger a vida de sua mãe) Ele agora tem uma missão que lhe é confiada. Aos pés da cruz, João é encarregado da mesma missão: proteger e amparar a mãe de Jesus. (Jo. 19,25-27) A missão do jovem torna-se de não só manter e desenvolver a própria vida, mas a de proteger e manter a vida de outro.
Dar e proteger a vida é uma missão a que precisamos ajudar os jovens a desenvolver. Isto é não só sair da letargia de ficar deixado e depressivo, minando as próprias energias vitais. É preciso pôr-se de pé e dar a sua própria opinião, dizer o que se sente e o que acha da vida e das relações que ela está tecendo. Mas – ainda hoje – sob o pretexto de que o jovem não tem opinião, a sociedade não quer escutar o que o jovem tem a dizer. As nossas campanhas de conscientização são frequentemente campanhas de adultos para jovens. Será que eles são têm nada a dizer sobre a sua vida, sobre a sociedade, sobre a Igreja ou sobre os próprios problemas? Nesta mesa mesmo, quem é o jovem convidado para discutir os problemas da juventude? Parece mesmo que só Jesus (que não era velho) se importa com o jovem, com sua morte e com sua opinião.
Quem sabe, nós da Igreja, tenhamos que fazer a mesma coisa: escutar mais os jovens antes de querer ter as respostas prontas para trabalhar com eles. O papa João Paulo 2º chega a dizer que a Igreja é chamada a escutar os jovens. Diz mesmo que a Igreja precisa aprender deles, aprendendo a escutar deles a sua voz e a sua opinião. (Christifidelis Laici, 46). O papa chegou aqui muito próximo desta atitude jesuânica. Falta agora as nossas comunidades darem espaço de participação completa aos jovens. Eles podem não ter a sua opinião perfeitamente elaborada e esquematizada, mas têm mais conhecimento da própria realidade que nós, que temos as idéias assentadas, mas nem sempre correspondentes à realidade, porque ela já mudou.
Última observação: Naim é uma insignificante cidade da Galiléia, um lugar pobre e desimportante. Jesus não leva em conta nada disto: se compadece, ressuscita e escuta o jovem pobre com o mesmo carinho que vamos ver demonstrar ao jovem rico. Para muitos, é mais fácil escutar os jovens ricos, com mais anos de estudo e com mais formação. Será que eles têm mais opinião ou mais problemas? O rap, o hip-hop, o funk, o samba e tantos outros ritmos e formas poéticas dos pobres parecem nos mostrar o contrário: são os pobres que – vivendo mais imersos nos problemas – acabam por refletir e opinar mais sobre eles, embora a sua voz seja constantemente desvalorizada pela sociedade. Que insiste em ouvir mais a opinião dos ricos e dos filhos da classe média. Será que a Igreja não poderia ter uma prática diferente, já que ela é chamada a ser o grupo seguidor de Jesus, o Cristo?
Passemos a outro texto de Jesus se relacionando com uma outra pessoa jovem, desta vez uma menina.

21 Depois que Jesus atravessou de barco novamente para a outra margem, uma grande multidão reuniu-se em torno dele. Ele se achava junto ao mar. 22 Chegou um dos chefes da sinagoga, chamado Jairo. Logo que o viu, caiu aos seus pés e 23 pedia-lhe com insistência: “Minha filhinha está nas últimas. Vem impor-lhe as mãos para que se salve e viva”. 24 Jesus foi com ele, e grande multidão o seguia e o apertava de todos os lados.
(...)
35 Jesus estava ainda falando, quando chegou alguém da casa do chefe da sinagoga, dizendo: “Tua filha morreu. Para que continuar incomodando o Mestre?”36 Ao ouvir, porém, a notícia, Jesus disse ao chefe da sinagoga: “Não tenhas medo! Basta crer!”37 E não deixou que ninguém o acompanhasse, a não ser Pedro, Tiago e João, irmão de Tiago. 38 Ao chegar à casa do chefe da sinagoga, Jesus viu a agitação e muitos chorando e se lamentando. 39 Entrou na casa e lhes disse: “Por que toda esta agitação e este choro? A menina não morreu! Está dormindo”! 40 Eles riam-se dele. Mas ele fez sair todo mundo, tomou o pai e a mãe e os que levava consigo, e entrou onde a menina estava deitada. 41 Pegou-lhe a mão e disse: “Talitá cumi !”, o que quer dizer: “Menina, eu te ordeno, levanta-te!” 42 Imediatamente a menina se levantou e se pôs a caminhar, pois tinha doze anos. E as pessoas logo se encheram de grande espanto. 43 Recomendou-lhes muito que ninguém viesse saber do ocorrido, e disse para darem de comer à menina.

Mc 5

A interrupção do sermão de Jesus faz com que ele se interesse pelo drama humano. Enquanto sai, ele se atrasa a chegar, por causa de outra mulher, que sofria de hemorragia. Este texto foi suprimido porque não nos interessa neste momento. Mas é um texto de grande riqueza de detalhes e digno de uma leitura feminista da Bíblia, para notar como Jesus trata as mulheres. Voltemos à menina.
Jesus é ridicularizado por falar que a menina ainda tem chance de viver. O que teria matado aquela menina? Não sabemos, mas Jesus – como no caso anterior – ordena a imediata ação. O fato só reforça a afirmação que fizemos sobre que a vontade de Jesus, o Cristo, não é que as pessoas jovens possam estar perdendo a vida em atitudes ou fatos que os levem à cama e à morte.
Também aqui, a menina tem a ordem de levantar-se. Jesus não parece mesmo querer a juventude deitada ou prostrada. A atitude deve ser de se por de pé diante da vida, combatendo os problemas e inventando soluções novas. Como Davi. Quando Jesus retoma a leitura da Torá e dos Profetas, ele o faz de uma nova forma. A própria leitura que Jesus, o Cristo, faz da Bíblia é nova e retoma o melhor dela. As duas ressurreições retomam o “espírito” de Elias.
Passemos à atitude de Jesus com relação a outro jovem que lhe aborda: um jovem rico e com sonhos nas nuvens. Ele não tem que se preocupar com a sua própria manutenção e com a sua vida. Por isto mesmo, joga as suas preocupações para a outra vida. A vida temporária está boa, como será a vida eterna?

17 Quando Jesus se pôs de novo a caminho, alguém veio correndo, ajoelhou-se diante dele e perguntou: “Bom Mestre, o que devo fazer para ganhar a vida eterna?”18 Jesus respondeu-lhe: “Por que me chamas de bom? Ninguém é bom a não ser Deus! 19 Conheces os mandamentos: Não matarás, não cometerás adultério, não furtarás, não darás testemunho falso, não prejudicarás ninguém, honra pai e mãe ”. 20 Ele disse: “Mestre, tudo isso eu tenho observado desde a minha juventude”. 21 Jesus olhou para ele com amor e disse: “Só te falta uma coisa: vai, vende tudo o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no céu ; depois vem e segue-me”. 22 Mas ao ouvir isso, ele ficou triste e foi embora abatido, porque possuía muitos bens.
Mc 10
Jesus é contra a riqueza? O texto posterior explica que Jesus acredita que a riqueza sempre será um fardo para quem a tem. Porque precisa sempre se ocupar dela para manter e desenvolver o que tem. Assim, não será possível se desenvolver e crescer na fraternidade, porque a fraternidade e a solidariedade minam a riqueza que se pode ter, socializando os bens. Um rico extremamente solidário é como uma roda quadrada: um conceito contraditório de si mesmo.
Mas o texto diz também que Jesus olhou o jovem com amor. Jesus via o coração e os sonhos daquele jovem. Ele era sincero na pergunta, não colocava nela nenhuma segunda intenção. Era uma pergunta vital para ele. Por isto, Jesus só pode responder no nível da vida: Jesus propõe um projeto de vida, novo e desafiante. Algo que aquele jovem ainda não tinha: uma vida de aventura na confiança de Deus, no seu projeto e nas pessoas que viviam com ele. Aí os sonhos malogram: é fácil querer tocar as nuvens. O difícil é se elevar do chão. Dá medo, porque se perde a segurança. E é isto que Jesus propõe: o desafio de perder a segurança do dinheiro para conquistar a liberdade de quem tem projeto de vida comum. Este é o resultado do amor de Jesus por aquele jovem. À pergunta sobre a vida eterna em geral, Jesus contrapõe uma proposta de vida comum bem concreta. Esta seria a chave da felicidade que o jovem estava tanto buscando e jogando para uma outra vida. Jesus propõe uma vida outra, diferente de tudo o que ele já conhecia. Uma aventura nos braços de Deus e de seus amigos. Parece que a adrenalina foi muito forte e o jovem não agüentou enfrentar o risco de perder os medos. Os medos nos amarram e nos põem seguros. Por causa deles, não fazemos muitas coisas, ou não fazemos nada.
Vida comunitária e podre. Este era o projeto de Jesus, o Cristo. Vida solidária com os sofredores, com os pobres, com os doentes, com os aprisionados. Afinal, a boa noticia não veio para eles? (Lc. 4,16-29 apresenta o texto de Is. 61,1-2; 58,6). A vida individual ou individualista é mais segura e menos arriscada, porque alguém só tem que se preocupar consigo. E quando a vida está muito ruim, pode-se sempre por fim a ela. Esta é a causa maior para o suicídio. Quem tem um projeto de vida comunitária precisa se ocupar com tantas coisas e pessoas que não pode conceber o suicídio. Isto iria privar a vida de muitas pessoas do dom de sua vida repartida.
Não há provas e pesquisas concretas, mas será que uma parte dos números de acidentes de trânsito, envolvendo a morte de jovens, não se refere a suicídios disfarçados, fruto de uma vida vivida sem sentido? Há quem desconte nos outros a frustração da própria vida com atos de violência e há quem desconte em si mesmo. Especialistas andam cheirando este dado por baixo das estatísticas de acidentes de trânsito. O álcool é depressor de humor e – para uma pessoa já insatisfeita e depressiva – pode ajudar a tomar a coragem de acabar com a própria vida num acidente de trânsito, que apareceria nas estatísticas apenas como um acidente por imprudência. Um acidente de trânsito provoca a morte de forma rápida e – presumivelmente – sem dor. Os pais e os amigos, incluindo a namorada(o), não ficariam muito culpados com isto. Nem se precisa deixar uma carta explicando nada. Sai-se da vida de forma rápida... Para que isto aconteça, é preciso apenas ter um carro nas mãos, depois de uma festa. Os pobres têm menos esta oportunidade. Os pobres morrem mais de acidentes de trabalho e do uso de armas de fogo, incentivados pelo tráfico e distribuição de drogas.
Questão do sentido da vida não pode ser uma questão marginal. Se a vida não tem sentido, ela não merece ser vivida. Esta é a fonte de sofrimento psíquico de muitos jovens. A questão do álcool e das drogas, sejam pesadas ou leves, só mascaram a questão de fundo. As pessoas usam drogas para se sentir bem momentaneamente. Isto significa que elas não estão se sentindo bem. O que causa este desconforto? O fato de não ter sonhos e nem sentido afeta as pessoas de forma séria, mas invisível. É como uma sede invisível: o organismo precisa de água, mas o corpo não reconhece a sede que tem.
Uma sociedade consumista como a que temos possibilita uma satisfação total do desejo para um grande número de pessoas. Mas esta satisfação é apenas aparente: o humano tem sede de relacionamentos saudáveis, duradouros e solidários. Está no código genético do ser humano, sem cooperação ativa e sadia, não conseguimos manter a espécie viva sobre o planeta Terra. Ao satisfazer os desejos superficiais o dinheiro enterra o desejo mais vital em camadas profundas de nossa psique. O que não quer dizer que ele não esteja morto ou que ele não continue atuando de forma ativa em nossa vida. Só que agora, de forma a produzir neurose ou sofrimento. O mesmo sofrimento sentido como tristeza pelo jovem rico, que – sabendo que a proposta de Jesus era mais radical, mas mais realizadora – não conseguiu reunir forças para deixar tudo e seguir o mestre, mesmo a custo de viver uma vida sem sentido e sem esperança.
Quero trabalhar um último tema na relação de Jesus com os seus contemporâneos (ou pelo menos o que sabemos sobre ele através do testemunho dos Evangelhos). É a indignação ética. Nossos discursos eclesiásticos sobre Jesus, o Cristo, fazem crer que sempre estável e pacifico, distorcendo em parte o projeto de Jesus, o Cristo. Ele também tinha momentos de raiva e de indignação, como no caso da expulsão dos vendedores do Templo de Jerusalém. O texto vai abaixo.
13 Estava próxima a Páscoa dos judeus. Jesus subiu a Jerusalém 14 e encontrou no Templo vendedores de bois, de ovelhas e pombas e os cambistas sentados. 15 Fez um chicote de cordas e expulsou todos do Templo, com as ovelhas e os bois; esparramou no chão o dinheiro dos cambistas e derrubou as mesas. 16 Aos que vendiam as pombas, disse: “Tirai daqui tudo isso e não façais da casa de meu Pai uma casa de comércio”. 17 Lembraram-se os discípulos de que está escrito: O zelo de tua casa me consome.
18 Os judeus tomaram a palavra e lhe perguntaram: “Que sinal nos dás para fazeres isto?”
19 Jesus respondeu: “Destruí este Santuário e em três dias eu o levantarei”. 20 Então os judeus disseram: “Quarenta e seis anos levou a construção deste Santuário e tu vais levantá-lo em três dias?”21 Mas ele falava do santuário de seu corpo. 22 Quando ressuscitou dos mortos, os discípulos se lembraram do que ele havia dito e creram na Escritura e na palavra de Jesus. 23 Enquanto estava em Jerusalém para a festa da Páscoa, muitos creram em seu nome ao verem os sinais que fazia.
Jo. 2

Este texto (como tantos outros) não tem unanimidade pelos exegetas. Alguns autores o colocam no inicio do ministério, outros no final. Não se sabe ao certo se a purificação do templo foi o gesto profético que pode dar o programa de pregação do novo profeta ou se ele foi a causa do desfecho final (a condenação à cruz), motivo para a sua condenação pelo povo de Jerusalém. Um povo ameaçado em seus empregos pode ser facilmente manipulado e convencido da necessidade da eliminação de uma ameaça.
A purificação precisava ser feita: a vida religiosa estava demasiada unida à vida política e econômica. O Templo era um lugar de dominação política (ficava ao lado da fortaleza Antonia, construída e administrada como sede do poder dominador), funcionava como banco (todas as ofertas em dinheiro ou em animais só eram aceitas depois que pagas em moeda do Templo) e como mercado (as ovelhas e bois oferecidos em sacrifícios só eram consideradas puras as que eram vendidas pelos empregados dos grandes sacerdotes, também grandes mercadores). O lugar não favorecia os pobres e nem a oração de quem quer que seja. A religião estava instrumentalizada como no tempo da monarquia, com reis e sacerdotes corruptos.
Os profetas lutaram e profetizaram contra a monarquia corrupta e arrecadadora de impostos de Israel. Jesus se insere no mesmo viés. A religião precisa ser fonte de justiça e de direito. Direito e justiça que favoreça os pobres. Porque – quando os pobres são favorecidos – toda a sociedade é favorecida, mas o inverso não é verdadeiro. A indignação e o ato violento de Jesus, o Cristo, se insere na mesma tradição dos profetas. Não estamos tratando aqui de uma violência gratuita ou auto-destrutiva, mas de uma violência positiva e combativa. Uma violência purificadora e rebelde.
Jesus era jovem ainda quando morreu. E é característica do jovem ter ideais e se pautar por eles. O processo de envelhecimento nos deixa cínicos, no pior sentido da palavra. A violência aqui relatada nos mostra que:
- Jesus não era nenhum mestre zen-budista, muito pelo contrário, era mais rebelde do que o desejado por alguns (herodianos, saduceus e grandes sacerdotes);
- Jesus e seu bando podiam ser perigosos para a estabilidade da religião dominada pelos ricos e opressores políticos (romanos).
Ao usar um recurso violento para a purificação do Templo, temos que considerar qual seria a outra possibilidade. Se Jesus fosse calmamente e conversasse com os cambistas e vendedores ele teria algum sucesso? Acho que a reposta é não.
A indignação ética é colocada por Jesus como uma forma de trabalho, geradora de forças para a obtenção de um objetivo. Jesus, o Cristo, não está na doutrina de que os fins justificam os meios de Maquiavel, mas sabe que é preciso de mais do que um discurso bem elaborado para mudar alguma coisa. É preciso que o discurso de mudança acompanhe uma prática de mudança. Sem esta união de discurso e prática, nada muda. E como dizem os franceses: quanto mais se muda, menos se muda. É a indignação ética que faz com que se colem o discurso e a prática. Sem ela, cai-se no fatalismo de que as coisas não mudam, porque sempre foi assim. Desde que existe humanidade, existe dominação e exploração, mas isto – com certeza – não é a vontade de Deus. Muito pelo contrário: a vontade de Deus é que o homem seja solidário e viva bem. Foi isto que Jesus, o Cristo, nos mostrou e nos revelou. Então, a indignação ética é o que nos move a ver que isto está errado. Que as coisas se põem de cabeça para baixo e que é necessário consertar isto. Cada geração tem a incumbência de consertar e arrumar as coisas para que a sociedade possa servir melhor a vida humana e não o contrário. É esta indignação ética que precisamos desenvolver na juventude de hoje.

4. AMARRANDO AS PONTAS

É preciso que se perceba que Deus não quer o sacrifício dos jovens ou dos homens. Abraão estava errado em sua religião, mesmo que ele fosse um homem de grande fé. Havia uma distorção no seu foco. E o grande milagre foi a correção que Javé operou em sua vida. Este processo foi de uma profunda conversão para Abraão. E é preciso que se saiba também que a vontade de Deus não é a dominação, mas a solidariedade entre a sociedade. São os deuses que exigem sacrifícios humanos, o Deus libertador exige que os humanos não morram, mas que vivam e façam viver. (Dt. 30,16)
A juventude sofre de uma violência simbólica, que não é menor do que a violência física. É preciso libertar a juventude deste condicionamento, mostrando a ela que o mundo adulto tem um interesse oculto em transformar o jovem em sacrifício de imolação aos deuses atuais. E eles são muitos. A atual sociedade capitalista é idolátrica e requer a morte de muitos para a vida de poucos. É preciso semear este tipo de indignação ética, mostrando aos jovens que o projeto de Jesus tem muito mais a ver com a sua vida do que ele pensa. Jesus, o Cristo, viveu e morreu em outra época, mas não está superado. Pelo contrário, o que está superado e rançoso é um tipo de visão e de discurso sobre ele. Um tipo de discurso que apresenta Jesus como “bom moço”, quando ele nunca foi isto. Este discurso, os jovens percebem que não serve para os tempos atuais. Com razão, porque ele é mistificador e fonte de domesticação dos jovens de todos os tempos. Bom mesmo é ler os evangelhos a partir da ótica certa: Boa Nova para os pobres.
A primeira coisa é perguntar para a juventude sobre a sua própria vida para que ela mesma seja protagonista de sua história. Sem isto, caímos na dominação adulto – jovem, que é do sistema que estamos (fazer PARA OS JOVENS). É preciso que eles sejam os autores de sua história. É o jovem que deve ser apóstolo de outro jovem, tanto na Igreja como na sociedade.
O nosso trabalho – enquanto teólogo e crente – é disponibilizar as ferramentas teórico-críticas para que eles possam construir um cristianismo que seja mais agente de transformação, pessoal e comunitária. Nada de armaduras e ferramentas de adultos para o combate. É preciso ser criativo, o que equivale a pensar de forma nova diante dos problemas. E se colocar de pé diante de outros jovens e dos adultos. Quando isto acontece, ele descobre um Jesus muito mais proclamador do Reino; um Jesus revolucionário e que não se vende fácil. Um Jesus que tem ideal e que chama a todos para que o sigam em seu projeto. Enfim, um Jesus que é um jovem pregador e que tem motivo para lutar e ser fiel ao ideal, mesmo que custe a cruz. Uma cruz que não é caminho de suicídio, mas caminho de ressurreição.

BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA

BÍBLIA SAGRADA – trad. feita a partir dos textos originais. Petrópolis: Vozes & Seafox engenharia de software, 1996.
BENTO XVI - A alegria da fé e a educação das novas gerações - discurso aos participantes da assembléia eclesial da diocese de Roma. CIDADE DO VATICANO, quinta-feira, 22 de junho de 2006. Disponível na Internet: www.zenit.org.it , 19 de setembro de 2006.
JOÃO PAULO II – Exortação Apostólica CHRISTIFIDELIS LAICI. São Paulo: Paulinas, 1989.
INSTITUTO DE PASTORAL DE JUVENTUDE – O jovem na bíblia: 20 roteiros para grupos. Porto Alegre: Evangraf, 1992.
QUAPPER, K. D. & SOLANO, B. T. – Rotundos invivibles: ser jóvenes em sociedades adultocéntricas. La Habana: Ed. Caminos, 2003 (Cuadernos Teológicos. Pastoral 4)