segunda-feira, 27 de julho de 2015

Tatuagem religiosa: Texto completo

ENSAIO SOBRE A LINGUAGEM RELIGIOSA DA TATUAGEM

Dr. Paulo F. Dalla-Déa*
  

1.     TATUAGEM: DO TABU À EXPRESSÃO DE SI

Vista como marcação de uma pessoa como fora-da-lei, no início do século XX, a tatuagem evoluiu para a sua introdução na cultura pop do final do século XX. Essa passagem, de cultura underground para a sua valorização cult foi um grande passo. Vista como forma demoníaca de marcar o corpo pelos religiosos mais fundamentalistas e por muitos pentecostais (Cf. Lev. 19,28), foi se resinificando à medida que a sociedade não precisa mais de uma tutela religiosa para dizer o que se pode ou não fazer[1]. Por fim, no final do século XX e início do século XXI, acabou caindo no gosto popular dos jovens numa cultura icônica que usa mais as imagens do que as palavras para comunicar. O que começou como inspiração religiosa e ritual de inúmeros povos da humanidade nos mais diversos tempos, passando a ser considerada demoníaca pela cultura cristã e underground no mundo das prisões. Atualmente,  expressa-se como forma religiosa não institucionalizada e permitida por uma sociedade que se percebe secular. Um salto desse só poderia existir no interior de uma cultura que valoriza a identidade pessoal do grupo ou tribo com uma cultura icônica surgida a partir da comunicação informacional em rede. Identidade pessoal e imagem não se contradizem, mas se somam e se reforçam. Na atual sociedade do espetáculo de G. DEBORD, a imagem vale mais do que a sua fonte, a cópia mais do que o original, porque pode ser reproduzida à exaustão, num espetáculo.
Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era diretamente vivido se esvai na fumaça da representação. (2003, p. 8)
A cultura informacional atual cultua a imagem como dado, como informação e como espetáculo de si mesma. O corpo, introduzido nessa lógica de produção e reprodução espetacular passa a ser valorizado pelo que expressa e representa, pela silhueta que mostra e pelo simbólico que traz à tona. A imagem inscrita sob a pele se torna uma epifania do que se quer mostrar: uma máscara do desejo de representação que se quer imprimir na mente de quem vê: é um fetiche de si mesmo. Uma epifania do self, uma forma de se realizar o desejo na imagem que se projeta sobre a visão e a mente do outro. A tatuagem é um signo, um sinal que se quer expressar o próprio ser ou uma mensagem ao outro. Como tal pode ser decodificada de muitas formas, como nos ensina BAKHTIN (2006, p. 29)
Os signos também são objetos naturais, específicos, e, como vimos: todo produto natural, tecnológico ou de consumo pode tornar-se signo e adquirir, assim, um sentido que ultrapasse suas próprias particularidades. Um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e refrata uma outra. Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel, ou apreendê-la de um ponto de vista específico, etc. Todo signo está sujeito aos critérios de avaliação ideológica (isto é: se é verdadeiro, falso, correto, justificado, bom, etc.). O domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos: são mutuamente correspondentes. Ali onde o signo se encontra, encontra-se também o ideológico. Tudo que é ideológico possui um valor semiótico.
A pele inscrita se insere na categoria não mais da biologia, porque cumpre uma função de tela de projeção do interior ao exterior, podendo ser ideologizada ou não, estando sujeita às regras semióticas e às suas interpretações. Segundo COSTA (2011, p. 3):
Além do significado para si mesmo, a pessoa deve ter consciência de que a tatuagem fará parte de seu corpo para sempre e tem pelo menos três significados: o “normal”, o “de cadeia” e o que significa para psicólogos das empresas aquele desenho no corpo do interessado em ser contratado. Assim, todo o cuidado é pouco.
A pele não é mais apenas a pele do corpo, mas passa a inserir uma mensagem a ser interpretada por quem vê. Expressão de dor, de alegria, de frustração, de sensualidade, de alegria, de bons momentos ou de amor, ela também expressa o sentimento religioso. E uma vez feita um desenho na pele, as interpretações que toma são independentes do significado que quem fez. Como toda interpretação semiótica, a leitura feita pelo leitor pode coincidir ou não com a do autor ou simplesmente ultrapassá-la. Assim, a religião está marcada na pele como forma de manifestação de um sentimento religioso difuso do dono do corpo. Sentimento que não precisa estar vinculado a uma igreja ou comunidade de fé, mas que lhe cria um vínculo com o seu grupo de iguais:
O mesmo sinal que é experimentado por um como um enfeite corporal, para outro acompanha uma experiência "espiritual" que marca a sua vida. (...) Se para os mais velhos a tatuagem é um gesto meditado, ela dá aos mais novos um intenso sentimento de existir, favorecendo o reconhecimento pelo grupo de pares.[2] (LE BRETON, 2010, p. 832.)

2.     A TATUAGEM COMO EXPRESSÃO RELIGIOSA

Imagens de Jesus, de Maria[3], dos santos ou de Buda, textos dos salmos (ou da Torá, do Korão ou dos Upanishads), medalhas de São Bento, figuras mais tradicionais ou mais modernas de anjos (e demônios), nomes e textos em hebraico ou em latim. Segundo COSTA (2011, p. 2):
Carregados de significado, os desenhos podem representar desde escolhas religiosas até fatos marcantes na vida de uma pessoa, ou simbolizar seu lado psicológico e suas atitudes, afinal ninguém colocaria em seu corpo algo definitivo que não tivesse algo a ver com seu gosto ou maneira de ser.
Tudo pode ser tatuado em uma pele a fim de expressar um sentimento religioso, que pode ser de gratidão, de dependência ou mesmo expressão de uma moda, estando sujeita à lógica de suas variações.  Peter BERGER (1973, p. 65) diria que:
O individuo moderno existe numa plausibilidade de mundos migrando de um lado a outro, entre estruturas de plausibilidade rivais e muitas vezes contraditórias, cada uma sendo enfraquecida pelo simples fato de sua coexistência involuntária com outras estruturas de plausibilidade. (...) É muito, muito difícil estar cognitivamente entre nous na sociedade moderna, especialmente na área da religião. É este simples fato sociológico, e não alguma mágica inexorável de uma visão “científica” do mundo, que está na base da crise religiosa da plausibilidade.
Referendando a citação acima, D. HERVIEU-LÉGER (2008, p. 89-90):
Essa “religiosidade peregrina” individual, portanto, se caracteriza, antes de tudo, pela fluidez dos conteúdos de crença que elabora, ao mesmo tempo em que pela incerteza das pertenças comunitárias às quais pode dar lugar.
Essa nova expressão de espiritualidade (no dizer de P. BERGER, “um rumor de anjos”) não se caracteriza por uma adesão a um grupo religioso (crença). Expressão de uma fé difusa pode expressar um desejo e uma face religiosa sem mesmo estar ligada a uma crença particular. Haja vista o número cada vez maior dos “sem religião” nas declarações do Censo do IBGE. Não quer dizer que haja um aumento do “ateísmo[4]”, já que o próprio ateísmo é uma crença particular, um grupo militante determinado contra a religião e suas manifestações “obscuras”. No grupo dos “sem religião”, o que se observa é um número grande de pessoas decepcionadas com a crença de sua fé (= igreja ou comunidade religiosa) que dizem poder ser religiosas sem igrejas definidas. Desse modo, não abandonaram sua religião, apenas abandonaram suas igrejas por falta de plausibilidade ou de coerência[5]. Caracterizadas por um patchwork[6] da fé, a pós-modernidade[7] se encarna no grupo dos “sem religião”. Ironicamente, o grupo que mais tem crescido na população brasileira nas últimas décadas.

3.     TATUAGEM: UMA FORMA DE SER RELIGIOSO?

Inscrições sob a pele são tradicionalmente, em muitas culturas, ritos de passagem. O tatuado (ou sua comunidade) expressa que algo morreu e iniciou uma nova vida. Vida e morte são temas absolutamente humanos e ligados à religião, sob quaisquer formas. O renascimento da tatuagem como forma cool de ser está ligado a uma cultura da imagem contemporânea e a um renascimento da manifestação religiosa, fenômenos que – para nós – estão absolutamente ligados.
VAN GENNEP, quando fala dos ritos de passagem, mostra que eles são normalmente formas de marcar a saída da puberdade e ingressar no universo adulto de um grupo cultural:
A distinção entre puberdade física e puberdade social é ainda mais nitidamente observada em certas cerimônias dos Toda. (2013, p. 75)
(...) No fundo, os semicivilizados (sic!) não procuraram muito longe, mas fizeram cortes em órgãos que, como o nariz e as orelhas, atraem o olhar porque fazem saliência e podem, em consequência de sua constituição histológica, sofrer todos os tipos de tratamento sem causar dano nem à vida nem à atividade do indivíduo.  (...) As mutilações são um meio de diferenciação definitiva. Outras há como o uso de vestuário especial ou de uma máscara, ou ainda as pinturas corporais (sobretudo com minerais coloridos) que marcam uma diferenciação temporária. São essas que vem desempenhar considerável papel nos ritos de passagem porque se repetem a cada mudança na vida do indivíduo. (2013, p. 76-77)
Se considerarmos um rito de passagem, a pessoa que faz uma tatuagem em sua pele estará querendo fazer um batismo? Seria então uma forma de se iniciar em um grupo? Mas que grupo? Se considerarmos a posição privilegiada de um antropólogo há muito ligado à juventude contemporânea, como LE BRETON, vamos suspeitar que a tatuagem é a ritualização de si mesmo, um rito de passagem para a vida adulta a partir do sentido que brota internamente ao indivíduo:
A juventude é um tempo de espera, um período de tateio propício à experimentação de papeis, à exploração do ambiente, à pesquisa dos limites entre si mesmo e os outros, entre si mesmo e o mundo; é uma busca intima de sentido e de valores. (...) Por ocasião da adolescência, realiza-se a simbolização do ato de existir e o ingresso ativo, como parceiro com todos os direitos, em uma sociedade em que é possível experimentar em si mesmo o gosto de viver. (2009, p. 32-33)
Se seguirmos a pista de LE BRETON, teremos que dizer que o símbolo tatuado brota da “necessidade interior” (mesmo que esteja alicerçada também na moda em vigor). Assim, as tatuagens religiosas seriam um rito de passagem de dentro para fora: um desejo interno realizado para se integrar ou ligar a um grupo exterior de sentido vital. Uma forma de expressar o self.
Conversando informalmente com um padre salesiano[8], ele me disse que já foi solicitado que benzesse uma tatuagem. E que ele o fez como qualquer imagem, já que era uma imagem religiosa. Como a bênção é uma forma de validação grupal, além de ter outros significados, poderemos dizer que o indivíduo queria uma validação da sua igreja de um desejo interior expressado pela tatuagem. Um desejo interior que precisa ser validado  exteriormente pelo grupo religioso. Será que alguém da família ou dos amigos da igreja condenasse a feitura de uma tatuagem e para isso seria preciso dizer que ela foi abençoada (= validada pelo sacerdote do grupo)?[9] Claro que essas são conjecturas que deveriam ser mais bem investigadas e aqui foram colocadas apenas como exemplificação do argumento principal.
Concordamos com o raciocínio de LE BRETON em que a tatuagem é um rito exterior mais brando (soft) do que ritos de ordália (mais brutais), que põem em risco a vida ou a integridade física de jovens com maiores dificuldades interiores de fabricar o próprio sentido da existência. Como fabricação do próprio conteúdo, a tatuagem toca no tema da autonomia identitária. Ela confere – através de uma interpretação própria do símbolo religioso – uma possibilidade de significação individual do símbolo que funciona ao mesmo tempo como síntese pessoal e como possibilidade de sentido interior. Algo que se poderia chamar de expressão do núcleo duro da religião pessoal de quem coloca uma tatuagem religiosa em sua pele. O corpo é dele, o significado é dele, embora o símbolo usado seja anterior à tatuagem e o significado coletivo para quem vê possa ser diferente do que o dono da pele lhe confere.
O símbolo na pele reflete o interior do significado religioso da tatuagem e lhe refrata (BAKHTIN, 2006) o que o indivíduo conseguiu sintetizar do que recebeu, quase um feedback da catequese recebida, direta ou indiretamente, daquele grupo religioso. Embora não precise manifestar uma adesão ao grupo, a tatuagem expressa uma forma de devolução interpretativa do que se absorveu como hermenêutica pessoal. Uma análise psicológica e antropológica da tatuagem cabe na possibilidade de visão desse fenômeno, embora seja muito além desse texto.

4.     O ESPAÇO ESTÉTICO E A PRESENÇA DE DEUS

Bento XVI e Lúcia Pedrosa DE PÁDUA nos lembram de que entre os espaços em que Deus se manifesta a uma pessoa está o espaço da beleza. A Catequese da Beleza de Bento XVI ficou famosa, inclusive nos meios católicos. Lá Bento XVI (2011) aponta algumas formas de beleza estética que nos levam até Deus: as catedrais góticas e as igrejas românicas; as músicas clássicas (J. S. Bach) e a música sacra; quadros e afrescos; a natureza. Bento aponta para obras antigas e já consagradas. Aqui se manifesta o seu senso clássico e europeu: a busca da beleza em obras consagradas é a via mais fácil de fazer. Mas ele tem razão ao afirmar:
A visita aos lugares de arte, portanto, não seja somente ocasião de enriquecimento cultural – embora também isso – mas, sobretudo, possa tornar-se um momento de graça, de estímulo para reforçar o nosso vínculo e o nosso diálogo com o Senhor, para parar e contemplar– na transição da simples realidade exterior à realidade mais profunda que expressa – o raio da beleza que nos atinge, que quase nos "fere" no íntimo e nos convida a subir a Deus. (p.2)
A teóloga DE PADUA (2013), seguindo uma via mais mística aponta outras possibilidades da manifestação da transcendência de Deus. E chegando ao espaço da beleza, aponta ainda para o campo científico, incluído como espaço de beleza. E para o âmbito ético, que faz que a fé resplandeça em boas obras.
Se for verdade que a obra de arte expressa mais do que se pode pensar num primeiro momento – ou como diria Bakhtin, um símbolo reflete e refrata e não se acaba na intenção de quem o criou, mas se refaz em relação com a interpretação/leitura do leitor – o desafio aqui é pensar não nas obras clássicas e já consagradas, mas pensar nas manifestações contemporâneas das obras de arte. Aqui se inscreve o esforço em pensar a tatuagem como forma de manifestação de um artista ou de manifestação de uma pessoa que quer que o seu corpo esteja marcado e inscrito com um desenho que expresse algo de religioso.
Como Lúcia DE PÁDUA, podemos falar aqui de espaços de Deus. Eu diria novos espaços de Deus. Espaços de expressão artística, mas também espaços de desejos de Deus. Se for verdade que a sociedade atual desinstitucionalizou a religião, será também verdade de que a arte pop da tatuagem é um novo espaço para os artistas e para os que sentem falta de Deus no espaço público. Ou para os que querem expressar os seus sentimentos religiosos em um espaço público e provado ao mesmo tempo, como é o corpo. Por ele, nossas relações e inter-relações humanas acontecem, sendo ao mesmo tempo um espaço privado e público. Um espaço público que não pode ser regulado pelas leis até agora inventadas. Se na Europa e em outros países, se pode proibir de se levar um crucifixo ou uma burca em público, não se pode proibir de se fazer uma tatuagem, já que o corpo é espaço privado, embora também proporcione inter-relações públicas.
Assim, as tatuagens religiosas podem expressar uma forma de expressar surda de um desejo da criatura pelo seu criador. Uma forma de expressão e manifestação que ainda não tem um canal mais próprio e politizado, mas um canal que expressa um desejo das novas gerações. De gerações que se manifestam em uma sociedade do espetáculo com formas imagéticas de se expressar. Mais do que com palavras, a comunicação tem sido feita por imagens que expressam conceitos. Nesse círculo hermenêutico parece repousar a linguagem da tatuagem como expressão e manifestação de um sentimento religioso que parece brotar de dentro do humano e se fixar em sua pele. Um verdadeiro espaço de manifestação de um Deus que quer se revelar e se sentir próximo do humano. De um humano que – mesmo inconscientemente – parece exclamar como AGOSTINHO:
Tarde te amei, Beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei! Eis que estavas dentro de mim, e eu lá fora, a te procurar! Eu, disforme, me atirava à beleza das formas que criaste. Estavas comigo, e eu não estava em ti. Retinham-me longe de ti aquilo que nem existiria se não existisse em ti. Tu me chamaste, gritaste por mim, e venceste minha surdez. Brilhaste, e teu esplendor afugentou minha cegueira. Exalaste teu perfume, respirei-o, e suspiro por ti. Eu te saboreei, e agora tenho fome e sede de ti. Tocaste-me, e o desejo de tua paz me inflama. (1999, p. 285)
As tatuagens religiosas na pele de tantos homens e mulheres de hoje manifestam inconscientemente o desejo de Deus e – ao mesmo tempo – um sentimento de religiosidade que brota de dentro pra fora. A pele se torna um solo sagrado lugar inesperado de manifestação de Deus numa sociedade de tantas opressões: como a sarça para Moisés. Lugar da surpresa do profeta e da experimentação de um sagrado que surpreende. (Ex. 3)

5.     TATUAGEM COMO BANDEIRA A SER LEVANTADA?

Quando se fala de secularismo, posso pensar em três formas básicas:
·         Secularismo pelo excesso (normas, discursos, condenações morais, etc), que supõe certa forma de legitimação da religião;
·         Secularismo pela negação da plausibilidade exterior da religião, que supõe que a religião deveria ser destruída (falência de fora pra dentro pela proibição ou pelo ataque à religião) ou finalizada (falência de dentro pra fora, pelo abandono dos fiéis);
·         Secularismo pela carência de coerência do discurso e da prática religiosa dos líderes dos grupos religiosos em geral. Discurso pacifista e decretação de guerras religiosas de todos os tipos estão nesse rol.
O primeiro tipo foi apoiado pelo Vaticano II quando fala da autonomia das realidades terrestres e da positividade do termo mundo, não mais encarado como entidade religiosa anti-Deus, mas como sociedade de humanos que tem graça e pecado misturados nela. Mas esse tipo de secularismo a religião continua com a sua plausibilidade social embora com uma margem de ação diminuída em relação ao passado. Quando o Vaticano II diminui os ritos e simplificou as fórmulas, traduzindo para a língua vernácula, estava apoiando esse tipo de secularismo. O que se chamava de aggiornammento da Igreja era de fato um desvestir-se, um simplificar-se, um valorizar ações que antes eram vistas como heresias, como contra a religião e contra Deus. Mas a plausibilidade da religião e de seus representantes nunca foi tocada, continuava a mesma, embora com uma lógica que queria ser menos afinada coma a filosofia e com a política do que com o Evangelho de Jesus.
O segundo tipo é o secularismo pregado por certas correntes da filosofia (e do ateísmo) que combate a religião pelos seus excessos do passado e pelo ataque no presente. É a postura de quem se tornou combatente contra todo tipo de pensamento religioso, inofensivo ou combativo. Deus não existe, isso deveria ser evidente, deverá ser demonstrado e todo tipo de embaixada do divino na terra (religiões) é sempre um desserviço a toda a humanidade. Embora ainda vivo em vários bastiões, esse é um tipo de secularismo militante que se manifesta em ser tão religioso em seu fervor quando os discursos e representantes religiosos que combate. Recentemente, gerou até uma postura tão militante que agora se tornou missionário: faz propagandas em ônibus (Londres) e em outdoors (Porto Alegre).
O terceiro tipo, que foi bem teorizado e descrito por HERVIEU-LÉGER, é o secularismo que gera o peregrino religioso que não mais caminha de um lugar a outro em busca de um solo sagrado, mas aquele que peregrina de um grupo religioso a outro buscando a coerência interior dos discursos e dos líderes que se enquadre na sua visão de coerência religiosa.
Os dois tipos de secularismo anteriores descritos ainda existem, mas tem lá seus nichos. O primeiro é combatido internamente pela corrente tradicionalista que crê que não se deve desvestir a religião dos seus excessos, mas devem-se conservar tudo como está, mesmo que sejam tradições que não remontem às mais antigas tradições e que acabem gerando fundamentalismos dos mais diversos. Nesse caso, temos aqui tanto cristãos, como judeus, como hindus, como muçulmanos combatendo esse tipo de secularismo.
No segundo tipo, temos uma guerra entre ateus e religiosos de todos os credos e cores, gerando morte e destruição por todo lado, especialmente da lógica mais simples: combater a guerra não se faz com terror, mas com gestos de inclusão, fraternidade e perdão, que geram novas relações que irão frutificar em paz, interna e externa.
O terceiro tipo, o do peregrino religioso parece repousar na força da coerência interna que os grupos religiosos não estão conseguindo passar para seus membros, por mais catequese e formação de seus membros que isso tenha custado. O que leva o peregrino a sair de seu espaço todo dia e caminhar até o local sagrado é a esperança de que uma hora a caminhada irá acabar e que o solo sagrado irá estar aos seus pés. Se atualmente as pessoas caminham de grupo religioso para grupo religioso, o que está em jogo não é a plausibilidade da religião (nunca negada), mas a plausibilidade de coerência interna e externa dos discursos e da vida dos grupos religiosos. Por isso, socialmente, o fenômeno aparece na pós-modernidade (modernidade tardia, como queiram) como trânsito religioso.
A religião não é negada em si, mas se está procurando qual grupo é melhor de se viver. Hoje não basta ter nascido nesse ou naquele grupo e ter sido configurado vitalmente por tradições essas ou aquelas. A religião que se procura como solo sagrado a se pisar é um espaço de plausibilidade interior. E isso, segundo as tradições cristãs, só será possível de ser achar quando a Nova Jerusalém descer do céu, no final dos tempos (Ap. 21)
Todo peregrino sonha com o final de sua peregrinação, com chegar ao solo sagrado tanto esperado e almejado. No caso do atual peregrino religioso sonhar achar um grupo perfeitamente coerente de discurso e de vida não é uma coisa fácil e beira ao esforço sobre-humano e suicida dos índios Guaranis procurando a Terra sem Males. Um mito que eles preferiam morrer a admitir o final da caminhada. Os Guaranis morriam sonhando e andando em busca dessa terra prometida.
Mesmo procurando um grupo religioso para chamar de seu, os atuais humanos do século XXI não rejeitam a religião como espaço de plausibilidade social, embora critiquem os seus excessos e admitam que se possa trocar de grupo religioso, pois se Deus é absoluto, as religiões são muito relativas. Isso dá a todos um sentimento de que as relações religiosas (assim como todas as outras) são líquidas (BAUMAN) e estão aí para se adaptar aos recipientes em que são colocadas.
Por isso, mesmo em um ambiente secularizado como a das sociedades atuais há a possibilidade de se levantar a bandeira do religioso, mesmo de forma particular e individual. O sentimento e a percepção de muitos de que existe uma religião indiferenciada e amorfa (que não gera prática e ligação concreta com um grupo religioso, em forma de adesão) é verdadeira. A religião não perdeu a sua plausibilidade, apenas perdeu espaço institucional na atual sociedade. Autores antigos diziam que o homem é um animal religioso e possivelmente têm razão. A tatuagem religiosa parece ser uma forma de plausibilidade interior projetando ao exterior. Seria ela uma forma de transgredir o discurso antirreligioso de muitos ou de transgredir o próprio discurso religioso que dizia para não fazer tatuagens no corpo porque eram formas satânicas de ser? Não parece que uma tatuagem de Jesus Cristo, de Nossa Senhora (em suas diversas formas) ou mesmo de Gandhi ou Buda sejam formas de se cultuar o demônio, embora essas formas satânicas também existam em pessoas que fazem as suas tatuagens. Tatuar o demônio parece ser tão religioso como tatuar Jesus Crucificado na pele, embora tenha significados diferentes. Seriam transgressão ou não? Transgressão a quem e por quê? Uma tatuagem parece mais uma bandeira empunhada a favor da religião do que do discurso secularista que tenta abolir e proibir toda religião na sociedade do século XXI. O mesmo fenômeno que gera a tatuagem religiosa também gera o discurso religioso na música e na poesia, nos blogs e nas críticas dos homossexuais à homofobia dos discursos religiosos. A religião não foi descartada com a evolução e o aprofundamento da ciência, mas parece conviver bem com ela.  Podem-se encontrar crucifixos e ícones religiosos até em estações espaciais habitadas por astronautas. E o tema religioso não é estranho a bilheterias de sucesso no cinema comercial (Harry Potter, Percy Jackson, A Paixão de Cristo, Anjos e Demônios, Noé, Thor e muitos mais) e em séries televisivas (Sobrenatural, Grimm). Há ainda muitos roteiros literários e de cinema que tem a discussão sobre a religião embutida em muitos aspectos. E há tantas capas de revistas que vendem o fenômeno religioso, tanto de forma positiva como de forma negativa. Esses são só alguns exemplos de uma religiosidade diária que não escapa da vida de ninguém.
A existência de uma atitude religiosa difusa nesse século, embora os teóricos do século XIX e XX cressem que a religião iria ser abolida com a ciência[10], parece dizer que o que se critica hoje não é a religião em si (ou mesmo a existência de Deus), mas os grupos religiosos que tem discursos incompatíveis com as suas crenças e práticas. O fenômeno do trânsito religioso, apurado no Brasil e em outras partes do globo terrestre parece não só ser parte de uma globalização geral, mas ser coerente com a incoerência de muitos grupos religiosos. Buscando uma lógica interna forte e fiel a si mesmo, o peregrino religioso descrito por HERVIEU-LÉGER parece ser um ser dotado não só de conformidade com a própria tradição religiosa, mas carente de exercer o seu próprio livre arbítrio e a sua autonomia religiosa.

6.     Ideias à flor da pele

Numa sociedade que se manifesta mais com ícones do que com palavras e discursos, as tatuagens religiosas são formas poderosas de expressão. Se na sociedade ocidental do século XXI qualquer um tem possibilidade de construir – das mais diversas formas – o próprio corpo como auto escultura, o desenho na pele não só manifesta uma forma de expressão (como histórias em quadrinhos - HQ). Mas se torna uma forma de auto expressão religiosa, em forma de ausência (desejo) ou de presença (bandeira a ser hasteada). Como forma de ausência, torna-se uma manifestação de enfrentamento de uma sociedade que quer ser oficialmente não religiosa. Como forma de presença, manifesta-se como bandeira hasteada, mostrando que o sentimento religioso (mesmo que vago) é um valor importante para a pessoa que se fez marcar na pele.
Também a tatuagem religiosa é uma forma de transgredir, não só a religião oficial, mas também a sociedade secular, manifestando-se como moda religiosa. Fator de consumo efêmero, mas também de permanência tanto histórica como sentimental. E, sobretudo, espiritual. Um espiritual que ainda não chega a ser especificamente cristão, mas que aponta um campo fértil para uma atitude de fé mais profunda e enraizada no Evangelho.

Referencias bibliográficas

1.      AGOSTINHO – Confissões – trad. de J. O. Santos e A. A. de Pina. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Coleção Os Pensadores).
2.      BAKHTIN, Mikhail - Marxismo e filosofia da linguagem - 12ª Ed. HUCITEC, 2006.
3.      BAUMAN, Z.; DONSKIS, L. – A cegueira moral: perda da sensibilidade na modernidade líquida – trad. Carlos A. Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
4.      BENTO XVI – Deus, arte e beleza, quarta-feira, 31 de agosto de 2011. In: http://noticias.cancaonova.com/catequese-de-bento-xvi-deus-arte-e-beleza/, 25 de abril de 2015.
5.      BERGER, P. L. Um rumor de anjos – a sociedade moderna e a redescoberta do sobrenatural – trad. Waldemar Boff. Vozes: Petrópolis, 1973. Coleção Antropologia 4. 128 p.
6.      BÍBLIA DE JERUSALÉM – trad. em língua portuguesa baseada na nova edição francesa, inteiramente revista e aumentada (Éditions du Cerf, Paris, 1973), São Paulo: Paulinas, 1982.
7.      BONHOEFFER, D. – Resistência e submissão: cartas e anotações escritas da prisão – trad. Hélio Schneider. São Leopoldo – RS: Sinodal/EST, 2003.
8.      COSTA, L. A. G. – Tatuagens de A a Z: tudo o que você sempre quis saber sobre tatuagens e seus significados. Curitiba: A. D. Santos Editora, 2011.
9.      DE PADUA, L. P. – Espaços de Deus: pistas teológicas para a busca e o encontro de Deus na sociedade plural, p. 21 – 46. In: DE OLIVEIRA, P. R.; DE MORI, G. (orgs.) – Deus na sociedade plural: fé, símbolos, narrativas. São Paulo: Paulinas, 2013.
10.  DEBORD, G. (1931-1994) – A sociedade do espetáculo - tradução em português: www.terravista.pt/IlhadoMel/1540 e paráfrase em português do Brasil: Railton Sousa Guedes e Coletivo Periferia www.geocities.com/projetoperiferia, 2003. Acesso em 06 fevereiro de 2015.
11.  FERNANDES, S. R. A. (org.) – Mudança de religião no Brasil: desvendando sentidos e motivações. Rio de Janeiro: CNBB/Palavra e Prece, s.d. (Coleção CERIS)
12.  HERVIEU-LÉGER, D. – O peregrino e o convertido: a religião em movimento – trad. João Batista Kreuch. Petrópolis: Vozes, 2008.
13.  IRWIN, W.; BASSHAM, G. (orgs.) – A versão definitiva de Harry Potter e a filosofia:  Hogward para os trouxas – trad. G. L. Libralan. São Paulo: Madras, 2011.
14.  LE BRETON – Antropologia do corpo e modernidade – trad. Fábio dos S. C. Souza, Petrópolis: Vozes, 2013.
15.  LE BRETON, D.; MARCELLI, D. – Dictionnaire de l´adolescence et de la jeunesse. Paris: Quadrigue/PUF, 2010.
16.  VAN GENNEP, A. – Os ritos de passagem – trad. Mariano Ferreira. Petrópolis: Vozes, 2013. (Coleção Antropológica)



* Pós-doutor em Ciências da Religião pela Université Laval (Canadá) em 2013. Doutor em Teologia pela Escola Superior de Teologia (EST) de São Leopoldo – RS. Professor titular de Sociologia e Filosofia da UNIESP em Jaú - SP. E-mail: paulo_fernando@hotmail.com.
[1] D. BONHOEFFER já teorizava essa emancipação da tutela religiosa em 1943, na Alemanha de Hitler.
[2] Le même signe est vécu par l’un comme un embellisement corporel, pour un autre il accompagne une expérience « spirituelle » qui bouleverse sa vie.  (...)  Si pour les aînés le tatouage est um gest plus médité, il procure aux plus jeunes um sentiment intense d’exister em favorisant leur reconaissance par le groupe de pairs. 
[3] Conversando informalmente com tatuadores no interior de São Paulo descobri que o que mais se inscreve em uma pele tem sido a imagem da Virgem Maria, sob diversas expressões. Jesus vindo em segundo lugar. O fato, que precisa ser mais bem investigado, pode expressar quanto a figura de Maria, mãe de Jesus, é popular entre os católicos. E pode expressar também formas de canalização de dependência com a figura materna, prefigurada na figura de Maria. Sob um ponto de vista estritamente pessoal, arriscaria dizer que tatuar a figura de Maria na própria pele acaba numa reivindicação implícita (por parte do tatuado) de ser Jesus ou – de alguma forma se equiparar a ele, mesmo que seja na forma de um super-herói.
[4] Ver o inspirador texto de FERNANDES, Silvia Regina Alves - Sem religião: a identidade pela falta? In: FERNANDES, S. R. A. (org) – Mudança de religião no Brasil, p. 107 – 118.
[5] Não quero entrar fundo nessa polêmica, mas pela interpretação que faço do fenômeno, o que temos não é um ateísmo mas uma espécie de “depressão de fervor religioso” fruto de uma crise de falta de sintonia entre o discurso religioso e a prática das pessoas que congregam num grupo religioso, especialmente das suas lideranças. A religião não entusiasma mais, por isso deixa de congregar as pessoas, que deixam de ir aos seus cultos e espetáculos (e deixam de contribuir pessoal e financeiramente). O que temos é um aumento da passividade e o aumento da atitude de “crítica metódica” cartesiana em relação às interpretações do Evangelho. O núcleo duro da religião não parece ser abalado, mas a sua conectividade com o real e com o social.
[6] Não se pode esquecer que a atitude de patchwork não deixa que a vida seja interferida pela fé. Assim, as normas morais não são regidas por uma moral extrínseca, ditada pelos dirigentes do grupo, mas por uma moral intrínseca – coerente ou não – ditada pela própria autonomia/dependência moral.
[7] Não vou fazer aqui a discussão entre pós-modernidade, ultramodernidade, modernidade tardia. Tomo o termo aqui com o significado de contemporâneo.
[8] Padre Luís Alves de Lima, salesiano e grande teórico da catequese do Brasil. Doutor pela Universidade Salesiana de Roma.
[9] O episódio lembra Jesus mandando que o grupo de leprosos (= gente com problemas/marcas na pele), que eram excluídos da sociedade de seu tempo, fossem se apresentar aos sacerdotes para ter a cura validada (Cfr. Lucas 17, 12-19). Claro que – nesse episódio – Jesus propõe a ida com uma proposta de caminhada de fé: ir aos sacerdotes ANTES mesmo de ser curado para que a cura se dê no caminho (o que ocorreu, segundo o relato) exige uma fé num Deus salvador e uma aposta vital nele. Mesmo assim o episódio não deixa de ser uma forma de validação cultural da cura: o que poria fim ao estado de exclusão deles e lhe daria o direito de cidadania numa sociedade teocrática como a judaica da época de Jesus.
[10] Os chamados mestres da suspeita do século XIX (Feuerbach, Marx-Engels, Nietzsche e Freud) parecem que tinham uma atitude filosófica de crença na destruição da religião tão forte quanto os religiosos mais fundamentalistas de hoje. Ou pelo menos escreveram coisas que deram a possibilidade dos seus seguidores terem essa leitura. Como diria o próprio Marx, nem ele seria tão marxista como os seus seguidores.

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