sábado, 11 de abril de 2015

Faz tempo que não leio um artigo tão lúcido sobre religiosidade. Concordo e recomendo.
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10/04/2015  |  domtotal.com

A monja pouco religiosa

Vivemos um excesso religioso que, por vezes, nos desfoca
Recentemente estive em Lisboa, Portugal, para dar uma conferência sobre homoafetividade e Igreja católica, a fala de uma monja de 83 anos me surpreendeu. Com um pouco mais de 50 anos de Vida Religiosa Beneditina, a senhora me diz ao pé do ouvido, "filho, acredite, o que me salva aqui no mosteiro é que sou pouco religiosa.”"  
Fiquei atônito me perguntando, como assim, pouco religiosa? Era uma contradição evidente, uma senhora toda vestida de hábito preto e vivendo na clausura se dizendo pouco religiosa era, no mínimo, confuso para mim. No entanto, a fala simples da monja me persegue e, talvez, ela nos dê uma lição de vida e, realmente, seja sua pouca religiosidade que a mantêm mais de 50 anos no claustro.
Vivemos um excesso religioso que, por vezes, nos desfoca. Algumas práticas religiosas passaram a ser mais importante que o sentido delas, ou melhor, o motivo pelo qual elas fazem sentido. Há uma inversão na prática religiosa que deixam muitos devotos a mercê do fanatismo. Invertem o olhar ao ponto fulcral da fé para as periferias das ações religiosas esvaziadas de sentido. Por vezes, no catolicismo, por exemplo, alguns símbolos passam a ser mais importantes que a adesão ao projeto de Jesus Cristo. Por isso, não é raro ver devotos católicos em suas práticas e de coração amargurado, ressentido e propagadores da maldade. É neste sentido, que muitos perderam o foco da sua prática religiosa.     
A religião que deveria ser o lugar do mistério se tornou o espaço das verdades estritas e epistemologicamente fundadas. O mistério deveria assegurar um caráter de provisoriedade as verdades da fé, enquanto estas favorecem uma leitura das ações da divindade ao longo da história. Desse modo, a verdade é algo a ser revelado, desvelado com a experiência mística do crente.
Vemos pessoas se agredindo por verdades que foram construídas ao longo da história sob diversos interesses, que nem sempre são frutos dos mais genuínos sentimentos da fé. Por outro lado, quase não vemos a adesão ao modo pelo qual, no caso do cristianismo, Jesus vivia. O valores de Jesus, bem como sua prática, parecem ficar em segundo plano na prática religiosa. Há um ímpeto de se fazer valer as verdades religiosas e quase não se preocupam em fazer viver o Cristo Ressuscitado na prática de fé das comunidades. É claro, que podem argumentar que Jesus vive nas verdades da comunidade mas, não só e muito menos estritamente nela. Jesus renasce quando sua prática é assimilada e vivida pelo homem de fé.
Talvez, seja esta a receita preciosa da monja, ser pouco religiosa é ter pouca verdade religiosa instituída, ou seja, salvar-se mais pela adesão às virtudes cristãs que pelas regras monásticas. A pouca religiosidade pode assegurar maior humildade na relação com Deus, uma vez que, há espaço para o mistério quando sabe-se  da precariedade que somos.
Despojar-se, até mesmo da fé, parece ser atitude mística que nos coloca aquém de qualquer religiosidade devocional. Pouca religiosidade pode ser sinal da profunda entrega ao projeto de Deus. Que o tempo pascal seja oportuno para renascer nos cristãos as práticas do Cristo tais como, a hospitalidade incondicional, a alegria do Reino, a partilha, a justiça social e, sobretudo, a religião sem máscara piedosa.  
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Rafael B. BarbosaMestre em Filosofia pela FAJE (Faculdade Jesuíta) em Ética. Graduação em Filosofia pela PUC-Campinas/SP. Pesquisador de Maurice Merleau-Ponty, da fenomenologia francesa, da filosofia contemporânea. É Professor de Estética/ Filosofia da arte e Filosofia Contemporânea na Faculdade de Filosofia da Arquidiocese de Mariana.